terça-feira, 1 de novembro de 2011

Vários tons de vermelho

Logo no primeiro gole da taça de vinho que ele me ofereceu eu percebi que tinha alguma coisa errada. Aliás, ele havia escolhido a bebida errada pra tentar me enganar, pois conheço praticamente todos os tipos de vinhos, desde as piores sangrias às mais sofisticadas safras européias.
Por isso mesmo não levei mais de dois segundos para perceber que aquilo não se tratava de uma garrafa mais cara ou mais ordinária: tratava-se de uma taça envenenada.
Guardei a informação pra mim mesma, e, com uma satisfação redobrada, continuei bebendo. Eu havia esperado tempo demais por aquele momento e não iria dar a ele o prazer de me ver recuar ou protestar.
Aquela noite era a única coisa que me restava, a última coisa com o que eu me importava e se era assim que ele queria conduzí-la, que fosse! Eu não tinha mesmo mais nada a perder.
Saboreei cada gole daquela bebida fatal, enquanto olhava profundamente em seus olhos: pude perceber o prazer com que ele me via beber a própria morte e tive que segurar uma risada ao imaginar que ele deveria estar se sentindo a pessoa mais esperta do mundo naquele momento.
Ele me observava com o prazer de um caçador que assiste a presa caminhando para sua emboscada, eu bebia com a alegria de ter plena certeza de onde meus passos estavam me levando.
Alguns instantes depois senti que a sala onde estávamos começava a rodar. Estava finalmente acontecendo!

Tive apenas tempo suficiente para olhar no relógio da parede o minuto exato em que meu corpo caía no chão soltando seu último suspiro: onze e cinquenta e sete da noite.

****

Finalmente está tudo acabado! O corpo dela está caído a meus pés, inerte e estranhamente menos assustador.
Eu percebo que um dos cacos de cristal de sua taça perfurou seu olho esquerdo durante a queda e um arrepio atordoante percorre meu corpo.
Ainda tentando controlar minha própria respiração com a intensidade do momento, eu forço minhas mãos ainda trêmulas a afastar seus longos cabeiros loiros e observar por alguns instantes aquele rosto sem vida. O batom tem o mesmo tom de vermelho de seu vestido e o contraste com a bancura de sua pele é tão vibrante que é difícil acreditar que ela não esteja mais viva!
Suavemente e sem saber muito bem o que estou fazendo, percorro meus dedos por seu pescoço e percebo que a pele macia ainda está quente, porém sem nenhuma pulsação.
Ela já deveria saber que nunca iria conseguir de mim o que veio buscar nessa noite. Nunca deveria ter me procurado! Toda essa situação poderia ter sido facilmente evitada se ela ao menos tivesse escolhido outra pessoa pra conversar naquela festa!

Uma lágrima de alívio e desespero me escapa aos olhos e eu levo a mão à cicatriz em minhas costas para retomar a coragem que começa a me escapar.
Preciso, mais uma vez, repetir pra mim mesmo que não sou eu o monstro nessa história. Que nada disso é culpa minha. Que eu fui forçado a chegar nessa situação extrema.
Mas meus argumentos são inúteis e sinto que meus nervos começam a me vencer. Minhas pernas agora tremem tanto que eu preciso me apoiar na parede, enquanto corro até o banheiro para vomitar. Abro a torneira e deixo que a água gelada anestesie a pele de minhas mãos e rosto, me sinto tão exausto que mal posso acreditar!

Caminho até o quarto e sento na cama, tentando colocar os pensamentos em ordem. A foto de minha noiva ainda está na cabeceira e aquele sorriso confiante e alegre me provoca uma dor insuportável!
De repente tudo volta à tona em minha memória: a festa de noivado, a estranha e sensual convidada que ninguém parecia conhecer, os dois meses de perseguição, a queimadura em minhas costas, o assassinato de Daniela!
Apesar de eu saber que não provoquei nenhum desses acontecimentos, não consigo evitar a sensação de culpa. Eu não sei o que fiz para atrair sua atenção, mas deveria ter evitado tudo isso de alguma forma!
O cansaço emocional começa a me vencer e sinto meus olhos se fechando contra a minha vontade. Meu corpo se estende sobre a cama e eu cochilo por apenas alguns segundos, mas acordo com um peso sobre meu peito.

Seu olho ainda está perfurado pelo pelo cristal, mas ela não parece se incomodar com isso. Seus joelhos estão muito proximos ao meu pescoço e apesar de ela não ter nenhuma arma em sua mão eu tenho a certeza de que dessa vez ela deixará muito mais do que uma cicatriz...

***

Enquanto saio do apartamento, não posso deixar de lamentar a perda dessa oportunidade. Eu dei a ele mais chances do que a qualquer outro, porque percebi nele um potencial que há muito tempo acreditava ter deixado de existir.
Penso até em comprar um vestido preto e ficar de luto por alguns anos em sua homenagem...

Mas justamente quando estou dobrando a esquina sinto aquele aroma maravilhoso outra vez: o cheiro do amor verdadeiro. Justamente na noite em que acabo de perder um noivo!
Dessa vez não deve ser coincidencia!

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Por ela

Enterrou os pés nas areia tentando, pelo menos naquela manhã, não pensar em nenhuma das coisas que precisava. A voz de sua melhor amiga ainda ecoava com suas últimas palavras: “Ser feliz é um verbo intransitivo“.

As lembranças das últimas quarenta e oito horas começaram a voltar como um carrossel girando numa velocidade vertiginosa e, antes que pudesse evitar, viu-se mergulhada naquele caleidoscópio de imagens, totalmente alheia ao mundo real a seu redor:

Estava em casa, em sua poltrona preferida, assintindo alguma coisa que não tinha a menor importância na televisão, quando Julia entrara correndo pela porta da sala, que nunca ficava trancada:
- Se arruma logo e vamos!!
Ela nem ao menos se preocupara em responder. Ja estava acostumada com as tentativas da amiga, sempre sugerindo algum programa “divertido”, algum pretexto para tirà-la de casa. Da mesma forma que Julia jà devia saber que a resposta a esses convites era sempre a mesma: Não!
- Alexandra estou falando com você! Você tem exatamente 20 minutos para se arrumar, confortavel, mas bonita. E leve um casaco leve porque vamos ficar fora até de noite.

Irritada com a insistencia de Julia, ela havia se voltado para dar um fora na amiga, mas pra sua surpresa, se viu apenas proferindo as palavras:
- Já vou.
Enquanto se arrumava, não conseguia entender o que estava fazendo. Ela quase nunca saía de casa, a menos que fosse por algum motivo muito importante. Não via o menor sentido em se arrumar, passear, andar a toa. Aliàs, não via muito sentido em quase nada, principalmente em viver.
Levou apenas dezoito minutos pra se olhar no espelho e sentir-se mais bonita do que jamais estivera na vida. Não que se achasse feia, mas normalmente tinha o hàbito de sempre achar defeitos em si mesma na hora de sair de casa.
Enquanto saíam de casa (Julia estava praticamente arrastando-a pela mão) ela lembrou-se de perguntar:
- Afinal de contas, pra onde é que estamos indo?
- Pra todos os lugares que eu sempre quis te levar.
Mais uma vez, ao invés de protestar imediatamente, ela apenas ficou curiosa:
- Nossa! Qual a ocasião? Por acaso é seu aniversário?
A amiga voltou-se pra ela com um sorriso radiante no rosto:
- Aniversário não é, mas tive três desejos concedidos essa manhã.
- Ahan... - ela comentara, cética - e quais foram esses desejos?
- Vem comigo que você vai saber.

A primeira parada foi na estação das barcas. Julia ja tinha comprado dois tickets para a barca de Paquetá e em dez minutos as duas ja estavam no segundo andar da embarcaçao, na parte aberta da lateral direita. Julia estava enconstada na murada, deixando que o vento embaralhasse seus cabelos de todas as formas que lhe aprouvesse. Ela sorria para Alexandra, que buscava abrigo do vento, sentada no branco mais próximo à porta.
- Vem pra cá ver as ondas! O dia está lindo hoje!

Alexandra pensou em responder que não queria seu cabelo ficasse parecido com um espanador, mas ao invés disso apenas se levantou e ficou ao lado da amiga.
- Você vai adorar Paquetá. A ilha é muito fofa, tranquila, e ótima para passeios em um dia ensolarado como esse. Mas a minha parte preferida mesmo é o trajeto. Essa hora e meia de barca, com vento fresco e balanço suave das ondas consegue acalmar qualquer preocupação. Me traz uma sensação de “paz dançante”!

Alexandra não discordou. Apenas concentrou-se em tentar aproveitar a tal paz dançarina, já que não tinha mesmo como escapar dali.

E o dia havia sido surpreendentemente agradàvel! As duas haviam caminhado por um parque natural, depois alugaram bicicletas e conseguiram conhecer toda a ilha em apenas uma tarde. Quando começou a anoitecer, sentaram-se pra jantar num restaurante próximo ao mar, que servia um peixe fresco delicioso!

Voltaram na última barca, às oito e meia da noite.

Durante a navegação de volta, Julia parecera cansada. Estava de pé, na proa da barca e contemplava as luzes dos navios na na Baía de Guanabara com um olhar distante e indecifrável. Após três tentativas de puxar assunto que foram totalmente ignoradas, Alexandra afastara-se um pouco da amiga, que obviamente parecia estar querendo privacidade.

A vista de dentro da baía de Guanabara à noite era simplesmente deslumbrante. O negrume da àgua refletia placidamente as luzes dos navios ancorados ao redor. A luz da lua e das estrelas parecia querer competir em beleza, numa disputa entre o natural e o artificial. A brisa morna não fazia barulho suficiente para abafar o ruído das ondas sendo cortadas pelo casco da embarcação.
Alexandra estava quase que hipnotizada, pensando no por quê nunca havia feito esse passeio antes, quando uma voz masculina a trouxera de volta para o mundo real:
- Eu só me pergunto porque é que nunca havia vindo à Paquetà antes!
Alexandra olhou para o rapaz ligeiramente assustada, por ouvir seus próprio pensamentos proferidos por uma voz masculina:
- Eu estava pensando exatamente a mesma coisa!
O rapaz soltou um sorriso simpàtico:
- Sua primeira vez também?
- Sim. Vim obrigada pela minha amiga. - Ela apontou para Julia.
O rapaz fez uma careta:
- Ela não parece muito afim de companhia no momento.
- A Julia sempre fica meio estranha perto do mar. E você? Veio sozinho?
- Não. Aniversário de um amigo.

Os dois começaram a conversar animadamente e quando perceberam a barca já estava ancorada na Praça XV e todos haviam saído. Todos menos Julia, que estava sentada em um banco, encolhida. Os dois correram em seu socorro:
- Julia, o que você tem? Tá passando mal?
- Não... ainda não! - Ela respondera, mas não parecia estar falando com a amiga.
- Vem, vamos levar ela num hospital.
- Não! - Ela agora estava falando com os dois - Estou ótima! Alexandra, ainda tem mais um lugar que eu quero te levar hoje a noite.

A próxima parada havia sido num barzinho com uma agradàvel música ambiente, na Lapa. Rodrigo havia resolvido acompanhar as duas meninas, ja que não conseguira convencê-las a ir ao hospital.
Julia participou da conversa dos dois por um tempo, bebeu duas caipirinhas e depois levantou-se da mesa pra ir dançar. Não, os dois não precisavam acompanhà-la, ela sabia que Alexandra era muito tímida pra dançar em público.

Por volta das quatro e meia da manhã ela voltou à mesa. Parecia sóbria, mas estava assustadoramente pálida!
- Acho que está na hora de eu ir pro hospital... - conseguiu dizer, antes de deixar-se cair numa cadeira.

A caminho para o hospital ela voltara a consciencia duas vezes. Alexandra estava a seu lado, enquanto Rodrigo ia apressando o motorista no banco da frente. Na primeira vez ela havia ficado consciente por quase cinco minutos e havia dito coisas que faziam pouco sentido. Dissera que seus três desejos haviam sido que Alexandra não pudesse lhe dizer “não” por um dia inteiro, que um novo amigo viesse compensar sua perda e que ela pudesse levar consigo uma parte da amiga.
Na segunda vez, mal havia abertos os olhos. Apenas dissera: “Ser feliz é um verbo intransitivo”.

Alexandra não vira mais a amiga. As horas do dia seguinte haviam escapado por entre seus dedos, num tubilhão de telefonemas, correria até a casa dos pais da amiga, perseguição de doutores pelo hospital em busca de alguma informação sobre o estado de Julia.
Apenas há duas horas atrás recebera a única notícia que não queria ouvir.

Sentada de frente para o mar Alexandra pensava “passivamente”, apenas permitindo que as ideias e emoções passeassem por seu corpo e consciencia. Lamentava terrivelmente a perda da amiga mas percebeu para sua surpresa que não se sentia infeliz.
Foi então que os delírios da amiga na madrugada anterior começaram a fazer algum sentido... Julia havia dito que levaria consigo uma parte da amiga e agora Alexandra tinha certeza de que parte fora essa: sua tristeza.

Ligeiramente desnorteada, sem saber se aquilo tudo era possivel mesmo, ela olhou para o lado e viu que Rodrigo se aproximava pela areia, trazendo uma garrafa de àgua. O brilho do sol nascendo às suas costas realçava as sombras de preocupação em seu rosto e Alexandra, sem ser capaz de chorar, sorriu.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Tela Negra

Ele já está me observando há pelos menos quarenta minutos. Sentado sozinho numa mesa no canto mais escuro do bar, ele nem sequer tocou no copo de whisky à sua frente. Me encara como se não houvesse mais nada ou ninguém a sua volta, como se eu fosse a única razão pra ele estar ali.

Esse comportamento suspeito estranhamente não me assusta. De todas as coisas que eu não consigo lembrar, sinto que ele é a mais importante. E ele parece saber disso também. Me olha como se nunca fosse perdoar o fato de eu ter esquecido quem ele é.

Todo mundo tem sido muito paciente comigo. Eles tentam me deixar à vontade e seus olhares piedosos parecem reafirmar a cada segundo que nada disso é culpa minha: o acidente, a perda da memória, tantas pessoas feridas e magoadas. Para eles eu sou a única vítima, e talvez eu seja mesmo. Mas esse estranho no fundo do bar me acusa com seus olhos, parece jogar sobre mim o peso de todas as infelicidades e injustiças dos últimos meses. E esse peso cai sobre os meus ombros como uma onda de alívio!

Meus amigos já pediram a conta e estão se levantando pra ir embora. Eu resolvo ficar. Nenhum deles protesta, em parte porque se acostumaram a nunca me contrariar, como se eu fosse uma frágil taça de cristal pronta para me estilhaçar a qualquer tom de voz mais alterado. Mas sei que eles também mal podem esperar pra se ver livres de minha companhia. Esse relacionamento de palavras não ditas e emoções reprimidas se tornou um fardo tão insuportável pra mim quanto pra eles.

Espero até que eles saiam, pego minha taça de vinho que ainda está pela metade e me dirijo com passos decididos até a mesa daquele estranho. Sento-me em silêncio na cadeira em frente a ele e tomo um gole de minha bebida.

Ele continua me encarando em silêncio por um tempo. Um silêncio pesado e cheio de cheio de eletricidade. Acho que vi uma pontada de raiva em seus olhos, mas talvez seja só minha imaginação. De qualquer forma é a primeira vez que me sinto realmente viva desde o acidente.

Estendo a mão para tomar outro gole do meu vinho, mas ele me interrompe. Sua mão pesada segura braço com um movimento brusco, derramando o resto do meu vinho na mesa. Ele não se importa com a bagunça. Nem eu.

- O que você está fazendo? – Ele pergunta. Sua voz me soa familiar, quente, feroz e dolorida.

- Não sei. – Respondo sinceramente.

- Devia ter ido embora com seus amigos. – Ele pronuncia essa última palavra com um rancor indisfarçável.

- Você me odeia.

- Sim! – ele confirma quase com um rugido de emoção.

Ficamos em silêncio. Não me sinto ameaçada ou intimidada. Talvez apenas um pouco triste.

Ele solta um longo suspiro e balança a cabeça lentamente:

- Não.

- Mas você não consegue me perdoar.

- Eu jamais teria esquecido você! Nunca! – Ele torna a me encarar. Seus olhos faíscam como um mar de acusações.

- Mas não é minha culpa...

- É SIM! – Ele grita, socando a mesa à nossa frente. As poucas pessoas ainda no bar se viram para nos olhar, sobressaltadas.

Eu me levanto e dou a volta na mesa, parando de pé ao lado dele. Seguro sua mão, que ainda está contraída com o soco e faço um discreto carinho em seu punho:

- Vem. Vamos sair daqui.

Ele se levanta, obediente. Sinto um calor quente de felicidade quando sua mão envolve a minha.

Caminhamos de mãos dadas em silencio. A noite sopra uma brisa gelada e a maioria dos postes não estão funcionando nessa parte pouco privilegiada da cidade. A rua está praticamente deserta; parece que todo mundo conseguiu encontrar um abrigo para o frio e escuridão dessa madrugada. Somos os únicos que não podemos nos abrigar, porque o inverno parece estar dentro de nós mesmos.

- Me fala sobre você – Peço, sem ter certeza de quero saber realmente.

- Não.

- Por que não?

- Você já sabe tudo a meu respeito. Eu não posso e nem quero passar por essa fase de apresentações outra vez.

- Então me fala sobre nós dois.

- Me fala você.

- Mas eu não sei! – Respondo, sentindo-me irritada e frustrada – Será que você não vê que estou tentando? Mas é inútil! Eu não lembro de absolutamente nada!

- Dane-se a merda desse passado então! –Ele pára de andar e me segura pelos ombros, me sacudindo com força – Foda-se a sua memória! Foda-se o que você lembra ou deixa de lembrar! Finge que nada nunca aconteceu! Você sempre foi boa nisso mesmo!

- Mas eu não quero fingir! Eu só estou tentando juntar os pedaços desse quebra-cabeça gigante que se tornou a minha vida.

- Pois não conte comigo pra isso! Não sou igual aos seus amiguinhos covardes! Eu me recuso a ser mais uma peça inanimada que você tenta encaixar na bagunça da sua própria cabeça. Eu tenho visto como eles se comportam perto de você: desesperados pra caber em qualquer situação que você os colocar. Eles renunciam a própria personalidade quando estão perto de você, só pra você não se sentir excluída, já que é a única que realmente não tem uma.

Antes que possa perceber o que estou fazendo sinto minha mão atingir o rosto dele, com força. Mal consigo respirar de tanta raiva. Ele fica surpreso com minha reação e olha pra mim, como se estivesse me vendo pela primeira vez:

- Então você ainda está aí dentro? – Ele pergunta em tom de provocação – Não é apenas a cabeça oca que vem fingindo ser nesses últimos meses?

- Cala essa boca!

- Senão o que? Você vai me bater de novo?

- Não! – Respondo confusa – Mas vou embora.

- E o que te faz pensar que eu me importo?

- Eu sei que você se importa!

- Sabe é? – Ele pergunta em tom desafiador – O que você acha que sabe sobre mim? Pensei que você não se lembrasse de nada.

- Eu não lembro, mas sei. Sei que você não consegue tirar os olhos de mim quando estou por perto. Sei que você está tão magoado pelo meu afastamento que isso te deixa enraivecido. Sei que o toque da minha mão consegue te acalmar...

Ele desvia o olhar. Parece estar lutando contra suas próprias emoções. Eu seguro uma de suas mãos entre as minhas e sinto seus músculos relaxarem. Uma suave onda de calor parece se alternar entre nós dois.

- Eu sei que você está frustrado porque pensa que perdemos tudo o que passou. Mas ainda temos...

Eu me aproximo e toco seus lábios levemente com os meus. Sinto meu coração disparar como se um tornado de chamas tomasse conta do meu corpo. Meus dedos ficam dormentes enquanto tudo à nossa volta parece mergulhar numa luminosidade púrpura.

- isso. – completo a frase, com um suspiro de satisfação.

Ele acaricia meu rosto com a ponta dos dedos, com um olhar de alegria e dúvida:

- Eu só me pergunto se o que nos resta é suficiente.

- É tudo o que precisamos. – Respondo, sentindo-me mais confiante a cada segundo. – Temos muito tempo pela frente para criarmos novas memórias.

Ele sorri e me abraça. O vento frio assobia em nossos ouvidos, arrastando folhas secas em pequenos redemoinhos pelo chão. A escuridão à nossa volta agora é quase total, mas eu mantenho os olhos abertos pra registrar cada pedaço dessa primeira memória que pretendo levar para o resto da vida.

domingo, 26 de junho de 2011

Senhor de Si.

Retirou a mordaça com cuidado e arriscou abrir os lábios por alguns poucos centímetros. Até ali tudo bem. Com as mãos ainda trêmulas de cansaço, fome e medo, levou à boca uma colher cheia com a deliciosa sopa e seu estômago se contorceu de dor e prazer.

As primeiras colheradas foram tímidas e cautelosas, mas então a fome que já sentia a três dias tomou o cotrole de suas mãos e ele começou a atacar o prato com ferocidade. Ele mal podia controlar o impulso de simplesmente desistir do talher e tomar todo aquele caldo com um gole só, e passaram-se alguns minutos antes que ele pudesse perceber a gravidade daquele descuido: tarde demais.


Engolira muito ar junto com a refeição e não conseguiu conter um arroto involuntário após a última colherada. Ficou apenas observando, impotente e aterrorizado, enquanto outro pedaço seu lhe escapava pela boca.

****

Tudo havia começado um ano atrás. Ele estava na mesa do seu bar preferido, com um grupo de amigos, assistindo ao jogo de seu time de futebol. Num certo momento, o time maracara um gol e ele soltou um palavrão. Porém no momento que abriu a boca, tomou um susto: dois olhos iguais aos seus haviam saído voando de seus lábios e simplesmente desaparecido no ar. Ninguém à sua volta parecia ter percebido.

Após um breve instante de imobilidade aterrorizada, ele resolveu que era hora de parar de beber e decidiu pedir uma água. Quase engasgou de susto quando fez o pedido ao garçom, porque nesse momento um par de orelhas também escapava por entre seus dentes.

Atordoado e começando a temer por sua saúde mental, ele levantou correndo e foi até o banheiro, jogar uma água no rosto.
Enquanto sentia o frescor da água gelada sobre sua pele começar a acalmá-lo seu olhar foi atraído para o espelho à sua frente e foi então que ele percebeu: seus olhos não eram mais os mesmos! Tinham mudado de cor, de formato e até mesmo de expressão! Ele, que havia se acostumado a ter olhos simples e de uma inexpressividade quase ingenua, mal podia se reconhecer através daquele par de íris azuis que o encaravam de volta e pareciam insinuar um perigo constante.

Subtamente uma ideia lhe passou pela cabeça e ele afastou os cabelos para ver suas orelhas: também estavam diferentes: além de ligeiramente menores, uma delas exibia um piercing prateado no lóbulo superior. Seria possível que...?

Ele resoveu fazer uma experiência: após verificar que não tinha mais ninguém no banheiro, voltou para a frente do espelho e pronunciou a palavra “teste”. No instate em que seus lábios se abriram para soltar o som, outra parte de seu corpo saiu flutuando com a palavra.
Imediatamente ele olhou para suas mãos: estavam maiores, um pouco mais peludas e calejadas. Os dedos grossos de aparência um tanto brutal não lembravam nem de longe os anteriores, delicados e bem cuidados, que tanta vezes haviam sido alvo de zombaria por parte de seus amigos. Aqueles, definitivamente, não eram “dedos de moça”.

Sentiu que seu assombro cedia lugar para um estranho tipo de euforia com aquela descoberta: cada vez que abria a boca, uma parte de si era modificada, ou melhor, aperfeiçoada. Era como se suas palavras, aos poucos, começassem a aproximá-lo da pessoa que sempre quis ser.

Permaneceu no banheiro por mais alguns minutos testando sua nova descoberta e quando voltou para sua mesa seus cabelos estavam mais longos e espessos, sua pele ligeiramente bronzeada e seus dentes brancos como porcelana. Nenhum de seus amigos pareceu se surpreender ou notar qualquer diferença.

No dia seguinte ele já tinha dois encontros, com mulheres que haviam praticamente se jogado nos braços dele ao final da noite anterior. Antes de sair para o cinema com a segunda e mais bonita das moças, ele tentou mais alguns “ajustes” em sua pessoa. Apesar de não poder controlar qual parte de si era modificada, ele ficou satisfeito ao perceber que conseguira tornar seu timbre de voz mais potente e “profundo”.

Foi apenas no segundo dia que ele começou a perceber que algo estava errado com aquela nova situação. Em primeiro lugar, assim que soltou um bocejo de manhã, percebeu que outra coisa saía voando de sua boca, mas dessa vez não era uma parte do seu corpo. Parecia... uma memória! Ele procurou em sua mente onde havia visto aquele jardim e aquele sorriso feminino que flutuaram na sua frente antes de se dissolver na luz do dia, mas não conseguiu se lembrar.

Ligeiramente perturbado por aquela visão, ele se revirou na cama e então percebeu que não estava sozinho: a loira da noite anterior estava a seu lado, ainda adormecida. Ele então lembrou que na verdade estava na casa dela e soltou um sorriso de satisfação.

Essa era a primeira vez que dormia com uma mulher desde seu ultimo namoro, há dois anos atrás. Seu novo “eu” havia levado apenas dois dias para fazer o que seu antigo passara um ano e meio tentando. E daí que ele perdesse algumas memórias pouco importantes no processo? Para se transformar nessa nova identidade confiante e bem sucedida, ele estava disposto a fazer qualquer sacrificio.

Ficou olhando para a moça por alguns minutos, enquanto se lembrava da noite agradável que tiveram. Ela era bonita, simpática, inteligente e tinha senso de humor. Exatamente o tipo de garota que ele vinha procurando há muito tempo.

Sentiu vontade de surpreendê-la com um café da manhã, mas quando se levantou da cama percebeu que seu corpo resitia com todas as forças à essa intenção. Ao inves de preparar o café e acordar a moça como havia planejado, ele simplesmente se vestiu e foi embora, antes que ela acordasse.

Chegou em casa sentindo-se frustrado e envergonhado por seu próprio comportamento. Precisava aprender a controlar esses impulsos que seu novo corpo queria impor. Irritado, bateu a porta soltando um palavrão e observou com um ligeiro estremecimento que outra memória escapava de sua boca.


***

Isso tudo parecia ter acontecido há milênios atrás! Um ano depois ele já havia cedido a essa nova personalidade quase que por completo. Era bem verdade que continuava se transformando cada vez que abria a boca e que nem todas as mudanças eram exatamente positivas. Mas em compensação sua vida estava muito mais animada , cheia de emoções e experiências que ele jamais teria experimentado se não tivesse abandonado sua antiga personalidade.

Decidira que algumas atitudes politicamente incorretas em troca de uma vida excitante e bem sucedida era um preço que valia a pena ser pago.

Até que, três dias atrás, ele percebera todo o peso daquela decisão.

Após uma discussão com seu melhor amigo, ele simplesmente perdera o controle sobre seus implusos! A discussão rapidamente evoluiu para uma briga e ele quebrou o nariz do amigo de infância com um soco. Quando sua namorada tentou interferir ele jogou a moça pra longe e disse algumas palavras bastante ofensivas.

Quanto mais ele cedia àquele impulso de violência, mais sentia a fúria crescendo dentro de si e resolveu que era melhor ir pra casa, antes que as coisas ficasses piores.

Caminhou em círculos por alguns segundos em sua sala, até perceber que mal reconhecia o ambiente em que estava. Nenhum daqueles móveis lhe parecia familiar, não fazia a menor ideia de quem eram algumas pessoas em seus porta-retratos, e, pra ser franco, estava bastante aborrecido com o mal gosto da decoração daquele apartamento. Não estava nem um pouco à vontade naquele lugar, que por tantos anos havia sido seu refúgio, seu lar.

Pela primeira vez ele não reconheceu o reflexo que viu em seu espelho. Havia se transformado numa pessoa completamente diferente!

Atordoado pelo choque e pelo arrependimento, ele decidiu interromper aquela transformação da única maneira que sabia: recusando-se a abrir a boca. Estava decidido a encontrar os pedaços que havia perdido de si mesmo enquanto ainda havia tempo, antes que não restasse nem a consciencia de que ele realmente perdera alguma coisa.

Sabia que a cada nova perda o caminho de volta tornava-se cada vez mais difícil e por isso ele havia optado pelo uso da mordaça. Não podia arriscar reações involuntárias. Cada pedaço que havia sobrado de si mesmo era valioso demais.

Ele agora estava exausto e perdido, mal sabia por onde recomeçar. E enquanto observava outro pedaço de si mesmo escapar daquele corpo que não era seu, percebeu que tinha muito pouco tempo.

Recolou a mordaça e, com um longo suspiro, obrigou suas mãos a pararem de tremer. Ele ainda tinha sua vontade.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Fragmento n° 2

Acordo quando os primeiros raios de sol entram pelas frestas de madeira. Meu corpo está tão dolorido que mal consigo me mover, mas então percebo que não poderia mesmo: estou encolhida dentro de uma caixa de madeira.

Não acredito que aconteceu de novo!

Começo a bater com os pés e as mãos, fazendo o máximo de barulho possível possível. Não demora muito pra que eu ouça passos se aproximando. Não preciso nem ouvir a voz de quem está do outro lado, pois reconheço seu perfume imediatamente:

- Me tira daqui seu idiota!
- Você não está presa. Sabe muito bem disso.
- Mas eu não consigo me mover direito pra sair. Meu músculos estão totalmente doloridos, por causa dessa posição estúpida que eu dormi.

Ouço um suspiro impaciente e então o lençol que tampava a caixa onde estou é removido. A claridade intensa fere meus olhos e eu os fecho, enquanto sinto dois braços fortes me levantando cuidadosamente e me ajudando a colocar o pés no chão. Sinto fisgadas por todos os músculos do meu corpo enquanto tento endireitar minha postura.
Ele me segura pelos ombros e tenta fazer uma massagem, mas suas mão pesadas só fazem com que eu sinta mais dor.

- Por que você não me deixa em paz? - Reclamo, enquanto o empurro pra longe de mim.
- Tudo bem. - Ele dá de ombros e sai do quarto.

Observo o quarto à minha volta, enquanto continuo tentando alongar meu corpo: a caixa de madeira onde dormi é o único "móvel". O lençol que a cobria está agora caído no chão cinzento e gelado ao lado dela e eu percebo que é a primeira vez que o vejo. Fora isso o quarto está totalmente, absurdamente vazio.

Abro a porta e sigo pelo corredor estreito até uma pequena sala. Ele está parado perto da janela, e eu observo seus olhos muito negros perdidos no balanço das copas das árvores do lado de fora. Ele sabe que estou ali, mas não se vira pra falar comigo, o que me deixa ainda mais irritada:

- Eu odeio aquela porcaria de caixa!
- Você veio por que quis. Outra vez.
- Não sei como eu achei o caminho pra essa espelunca!
- Você sempre acha, não importa quantas vezes eu continue me mudando.
- Como se você se mudasse pra muito longe!
- Mas eu nunca te convido pra me visitar. - Ele responde, virando-se pra me encarar.

Cada centímetro da minha pele parece esquentar à medida que seus olhos percorrem meu rosto.
Eu me aproximo alguns passos, quase sem perceber que estou andando, e fico a apenas uns poucos centímetros de distância dele. Seu corpo emana um calor agradável naquela sala gelada e vazia.

- Você comprou um lençol. - Digo, olhando em seus olhos.
Ele percebe o tom de acusação em minha voz e vira de costas, mas não se afasta.
- E daí?
- Nada. Só estou dizendo que você comprou um lençol. E você nunca compra nada.
- Não preciso de nada.
- Nem do lençol.
- Mas você precisa.

Percebo pelo tom de sua voz e por um leve estremecimento em seu corpo que ele se arrependeu dessa ultima frase. Isso me faz sentir um pouco melhor.

- Vou embora então.- Digo, virando de costas e me afastando em direção à porta.
- Não volte. Eu não estarei mais aqui.
- Vai se mudar de novo?
- Vou.
- Ta bom, não vou voltar.
- Mas vai me procurar de novo. - Percebo que ele está caminhando em minha direção.
- Não vou.

Começo a abrir a porta mas ele a fecha de novo, com um movimento brusco.
Fico imprensada entre ele e a porta. Sua respiração tão próxima de minha pele que eu não consigo evitar um arrepio.

- Você precisa parar de me procurar, está entendendo?
- Acha que eu não sei disso? Acha que eu gosto de acordar naquela caixa idiota?
- Então por que você simplesmente não pára de vir atrás de mim?
- Eu não consigo! Não sei o que acontece! Por que você não pára de abrir a porta pra eu entrar?
- Não posso!
- Não pode me deixar do lado de fora por uma noite?
- Não.
- Não pode porque tem medo que me aconteça alguma coisa, ou não pode porque não consegue me recusar? - Pergunto com um sorriso malicioso.
- Pára com essas perguntas idiotas!
- Eu acho que é um pouco das duas coisas.

Passo um de meus braços em volta de seu pescoço e acaricio de leve sua boca com a outra mão. Sinto que ele estremece, mas não se afasta.
- Você não estava indo embora?
- Foi você que fechou a porta.

Me aproximo mais e encosto meus lábios nos dele. Ele responde imediatamente, com um beijo quase desesperado.
Seus braços envolvem o meu corpo com uma mistura de avidez, desejo e carinho, e eu sei que ele deve ter se controlado a manhã inteira - e a noite passada - para não me tomar nos braços antes.

O beijo vai ficando cada vez mais suave, até que nossas respirações parecem estar sincronizadas. É simplesmente a sensação mais maravilhosa do mundo eu eu começo a me perguntar porque não fazemos isso com mais frequência!

Então, exatamente enquanto estamos mergulhados nesse momento de perfeita harmonia e prazer, ouço o leve ruído do ponteiro no relógio de pulso dele. Um calafrio gelado e dolorido percorre meu corpo com a velocidade de um relâmpago e eu instintivamente o empurro pra longe.

- Eu não posso. Sinto muito.
- Eu sei.

Ele tenta não passar nenhuma emoção em sua voz, mas seus olhos parecem experimentar uma dor mil vezes maior do que a do calafrio que acabei de sofrer.

Abro a porta e saio correndo, mesmo sabendo que ele não virá atrás pra tentar me impedir.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Música e efeito

Encaixei o fone nos ouvidos e aumentei o volume pela segunda vez no dia. Imediatamente todas as minhas preocupações e culpas pareceram se extinguir ou tornar-se pequenas demais.

Aquela musica era meu único prazer real, a única coisa que me fazia sentir realmente viva. A medida que as notas musicais iam tocando meus tímpanos eu sentia suas ondas sonoras espalharem-se por cada célula, cada neuronio, cada órgão, mergulhando meu corpo num absoluto estado de leveza e prazer. Fechei os olhos e me permiti entregar compleamente, dissipando o último resquicio de culpa com um sorriso de indulgencia: "é só uma música inocente".

No fundo eu sabia, ja tinha percebido a muito tempo, que aquela música era mais perigosa do que aparentava ser...

A primeira vez que a ouvi foi numa festa de fim de ano. A casa estava lotada, um som ambiente preenchia o lugar num volume moderado, algumas pessoas dançavam, outras conversavam à meia voz. Estávamos todos esperando pelos fogos da meia noite.
Não sei dizer exatamente como aconteceu, mas lembro apenas que num certo momento da noite um estranho DJ chegou ao local. Ele usava suéter, calça e chapéu pretos, luvas num vermelho bem escuro e - o mais estranho de tudo - uma mascara de tecido fino, na mesma cor das luvas, sem nenhuma abertura para olhos, nariz, nada!
O Dj caminhou até o palco sob os olhares curiosos dos convidados e, sem dizer uma palavra, retiriu do bolso um pequeno cd com a etiqueta "Música 8". Nomento em que a música começou a tocar a festa pareceu ganhar nova vida: as cores ficaram mais vibrantes, as pessoas mais alegres e até mesmo a força da gravidade parecia mais suave. Assistir aos fogos de artíficio, à meia noite, tendo com trilha sonora aquela música, foi uma das experiências mais incríveis que eu já vivera até então.
Depois disso eu nunca mais consegui ir a outra festa em que aquela música não tocasse pelo menos umas tres vezes na noite. Os finais de semana eram aguardados com avidez e celebrados com euforia. Cada vez que ouvia a "Música 8" era como se eu estivesse reencontrando uma velha amiga, ou voltando a um refúgio pacífico que eu não visitava há muito tempo.
Aos poucos passei a não aguentar mais a espera pelas festas de final de semana. A vida com a Música 8 era tão leve e bela que os problemas do dia a dia pareciam mil vezes mais pesados e insuportáveis quando eu retornava aos dias "normais".

Foi então que eu procurei o DJ daquela primeira festa, o único que tinha o estranho aparelho onde a música conseguia ser reproduzida. Parecendo a versão tamanho família de um Ipod normal, a geringonça pesava cerca de dez quilos e tinha trinta centimetros de comprimento. Pra funcionar precisava estar conectada à internet e cada vez que eu quisesse ouvir a música, uma "pequena taxa de utilização" era automaticamente debitada da minha conta. A saída de som podia ser ligada tanto à caixas amplificadoras quanto à fones de ouvido, mas carregar aquele trambolho na bolsa, como se fosse um MP3 player estava fora de cogitação pra mim! Pelo menos à principio...

Com o "Player 8" em casa, foi apenas uma questão de tempo até que eu perdesse o controle sobre a música. Quando dei por mim já estava ouvindo a Música 8 quase que diariamente e nos dias que não a ouvia ficava de mau humor ou deprimida. Uma boa parte do salario do meu mes era reservada para a taxa de utilização da Música 8, pois na minha opinião o prazer que ela me causava era muito maior do que o de comprar qualquer outra coisa. Alias, programas como cinema, teatro, sair com os amigos, etc. aos poucos pararam de me interessar. Eu preferia passar meus dias de folga em casa, mergulhada no prazer sensorial daquela melodia.

Eu nunca fui um pessoa burra e sabia exatamente o que estava acontecendo comigo. Sabia que a musica estava tentando me dominar e desde o principio eu já desconfiava que um produto vendido por um ser tão estranho quanto aquele DJ mascarado não poderia mesmo ter boas intenções. Mas mesmo assim eu continuei ouvindo cada vez mais aquela versão moderna do "canto da sereia", porque a sensação era tão boa que valia a pena!
Não vou aqui me estender pela lista de inconveniencias que a Música 8 me causou, porque para cada uma dessas inconveniencias ela me proporcionava horas de prazer que recompensavam à altura; mas lembro perfeitamente do motivo pelo qual senti pela primeira vez vontade de abandonà-la: saudades da vida. Saudades de prazeres mais reais, provocados não apenas pelas reações organicas que a musica me causava, mas pelas proprias experiencias em si. Saudades das alegrias espontaneas.
O único problema é que as alegrias espontaneas são muito incertas e a Música 8 era garantia de felicidade imediata. Eu amava a Música 8 e não fazia nenhum sentido me livrar dela. A vida iria continuar acontecendo e todos os dias eu me convencia de que era besteira me sentir culpada por ouvir uma simples música de vez em quando. Eu permaneceria relação de dependencia, amor e medo com a Musica 8 por muito, muito tempo...

Encaixei o fone nos ouvidos e aumentei o volume, pela segunda vez no dia. Imediatamente todas as minhas preocupações e culpas pareceram se extinguir ou tornar-se pequenas demais.

E então, envolvida por aquela sensação negligente de paz, eu sonhei: Uma figura parecida com o DJ da Musica 8 vinha em minha direção, mas suas roupas eram completamente brancas. Ele se aproximou de mim e, sem nenhuma palavra, removeu os fones que estavam em meus ouvidos, jogando-os para tão longe que se perderam de vista. Eu então removi com cuidado a másacara branca que cobria seu rosto e não senti nenhuma surpresa ao ver que aquela era eu mesma.

sexta-feira, 25 de março de 2011

O Apartamento 7

Isabella arrumou seu cabelo e olhou-se no espelho pela milésima e última vez: As pupilas dilataram-se dentro dos olhos claros, tentado enxergar os detalhes que a penumbra daquele aposento escondia. A luz das velas dava um tom quase vampírico ao seu longo cabelo negro, em contraste com sua pele muito clara.
Ela ainda não podia acreditar que estava ali. Era loucura, ela sabia, mas mesmo assim estava ansiosa para que acontecesse logo. Aquele seria o encontro mais estranho que já tivera em sua vida... e também o mais misterioso, mais emocionante, mais potencialmente perigoso...
Mas também poderia ser o melhor de todos...

O apartamento ainda estava vazio. Ela e sua mania de chegar adiantada!
Arrumou por uma última vez o decote do vestido branco e mais uma vez se sensurou por ter escolhido aquela roupa! Não era apropriada!
Devia ter escolhido algo mais sensual... aquele vestido branco, com seu tecido leve e seu corte angelical a fazia parecer uma virgem assustada. Nem de perto lembrava a mulher experiente, sexy e decidida que ela queria parecer naquela noite.
Soltou um suspiro resignado e caminhou até a varanda, para esperar. Agora não havia mesmo como voltar atrás.

Edgar sorriu satisfeito para seu reflexo no espelho. Experiente e confiante, a facilidade com que conseguia levar as mulheres mais lindas que via para a cama chegava quase a aborrecê-lo. Na maioria das vezes elas não eram nem de longe tão boas quanto em sua imaginação e os momentos de prazer passavam rapidamente para um aborrecimento profundo.
Por isso ele havia resolvido, há algum tempo atrás, experimentar novas formas de fazer amor, buscando na novidade parte da excitação que a facilidade havia lhe roubado.
Já havia feito muitas coisas nessa sua busca por ocasiões diferentes: Os mais variados tipos de encontros, com os mais variados números de participantes, com as mais variadas belezas femininas.
Não tinha muitas restrições morais, mas duas exigênciaa pessoais ele nunca transgredia: Só fazia amor com mulheres maiores de idade e que estivessem com ele por vontade própria. Recusava-se a pagar ou forçar algo que tanto gostava de conquistar por empenho próprio.
Entrou em seu carro, dirigiu-se para o local combinado, ainda com um sorriso no rosto. Há muito tempo não tinha conhecimento de uma idéia tão original e interessante quanto a do "Apartamento 7".
Essa seria uma boa noite. Ele podia pressentir isso.

Isabella torcia as mãos de nervosismo. Por duas ou três vezes pensou em pegar a bolsa e ir embora, mas a lembrança de seu apartamento vazio e de sua vida - tão vazia quanto - a fizeram ficar.
Os poucos minutos pareceram uma eternidade até que então ela ouviu o barulho da chave na fechadura e seu sangue gelou imediatamente: Ele havia chegado.

Edgar abriu a porta do apartamento 7 e demorou um pouco para acostumar seus olhos à penumbra. Como lhe tinham dito, não haviam lâmpadas no imóvel. Todo o local era iluminado unicamente por velas. Ele checou rapidamente que as outras coisas que lhe falaram sobre o apartamento também eram verdade: havia um aparelho de som (ele precisava levar de casa o cd que queria escutar), um vinho de excelente safra e uma caixa de chocolates sobre a mesa. Reparou satifeito que o último item da lista também estava lá: uma belíssima e desconhecida mulher esperando por ele.
A moça virou-se para encará-lo no momento em que abriu a porta. O vento agitava seu vestido branco e seu cabelo, fazendo com que ele tivesse a breve impressão de que ela acabara de chegar voando pela varanda.

Ela estava insegura. Ele percebeu imediatamente. O sorriso fácil e satisfeito com que suas "blind dates" costumavam recebê-lo não estava em seu rosto. Ela o examinava séria, um pouco constrangida, um pouco desconfiada. Talvez pensando em desistir de tudo e ir imediatamente pra casa.
Ele gostou disso. Edgar entrou com seu passo confiante, sem voltar a olhar para a moça na janela. Colocou o cd que havia escolhido e uma voz sensual encheu o apartamento, cantando num idioma desconhecido.

Isabella permanecia paralisada, agora ainda mais arrependida do que antes por estar ali. Olhou de relance para a bolsa e se imaginou simplesmente saindo pela porta, sem trocar uma palavra com aquele desconhecido.
Mas ao invés de fazer isso, ficou apenas observando enquanto ele, de costas para ela, abria a garrafa de vinho.
Edgar serviu as duas taças, tirou sua jaqueta e a colocou sobre o encosto da cadeira e depois caminhou para a varanda.

- Então você é a misteriosa Isabella. - Disse ele, olhando em seus olhos, mas sem sorrir e oferecendo para a moça uma das taças.
- Você sabe o meu nome? - Perguntou ela surpresa, aceitando a taça.
- Sim. - Respondeu ele, sem dar mais informações, e tomou um gole do vinho, com os olhos fixos nos dela.
- Eu não fui informada sobre o seu nome - Disse ela, um tanto confusa.
- Eu sei disso. - Respondeu Edgar outra vez.

Isabella ia dizer mais alguma coisa, mas ele a tomou pela mão, com um sorriso nos olhos. Ela o seguiu e os dois começaram a conhecer juntos os outros aposentos do apartamento.
A sala em que estavam terminava em uma cozinha americana, que tinha ao fundo uma escada para subir à cobertura.
Mas Edgar optou pelo um corredor à esquerda. Todo o apartamento era forrado por um tapete macio e espesso numa cor próxima ao laranja. O corredor que seguiam tinha duas portas: A primeira era a porta do quarto, que tinha uma imensa cama com lençóis num tom marfim e ladeada por dois exuberantes castiçais de prata. As velas que queimavam neles davam às bordas da cama um brilho dourado que transmitia uma mensagem muito clara: DESEJO.
O teto sobre a cama era de vidro e podia-se ver o céu estrelado do lado de fora. Isabella quase perdeu o fôlego quando viu a beleza do aposento, mas Edgar, sem dizer uma palavra, a conduziu pela mão para fora do quarto.
Outra porta do corredor era um banheiro: Com uma imensa banheira de hidromassagem toda em mármore. Espelhos por todos os lados, refletindo as chamas das velas e as pétalas de flores do campo espalhadas pelo chão.
Isabella achou esse aposento ainda mais bontio do que o quarto, mas outra vez, Edgar a levou de volta para o corredor. Os dois atravessaram outra vez a sala e subiram as escadas, em direção à cobertura.

- Você já veio aqui antes? - Perguntou Isabella, enquanto subiam as escadas.
- Não. - Respondeu Edgar.

Isabella continuou subindo os degraus, mas começava a ficar incomodada com o silêncio de seu parceiro. Por que ele era tão rápido em suas respostas? Por que não estava tentando puxar assunto, quebrar o gelo...
Será que ele estava decepcionado? Será que esperava uma mulher mais bonita? Mais... sexy?

Isabella sentiu uma imensa vergonha: estava fazendo papel de boba! É claro que aquele tipo de encontro não era para pessoas como ela: tímidas, inseguras, pouco experientes. Esse era o tipo de programa para pessoas resolvidas, seguras, experientes e atrevidas...
Ela nunca havia sido nada daquilo!! Não deveria estar ali e esse homem á sua frente já tinha percebido isso! Que vergonha!

A cobertura estava fresca e bem iluminada. Havia uma piscina e uma espécie de pirâmide de vidro que se levantava do chão e através da qual se podia ver o quarto, lá embaixo. Edgar a levou para perto da mureta de vidro. Ela distraiu-se por uma fração de segundos com a beleza da vista e quando olhou para ele novamente viu que ele olhava fixamente para ela, com aquele mesmo sorriso no olhar que parecia estar dizendo alguma coisa que ela não conseguia entender.

- O que está olhando? - Perguntou ela, abaixando os olhos.
- Estou tentando olhar, mas não consigo. - Disse ele, levantando o queixo dela com a mão, para que seus olhos se encontrassem de novo.
- Tentando olhar o que? - Disse Isabella, dessa vez olhando para os olhos dele.
- Olhar dentro de você. Pra ver se entendo.
- Se entende???
- Se entendo o que você está fazendo aqui.
- Eu estava agora mesmo me fazendo essa pergunta - Respondeu ela, corando da cabeça aos pés.
- E então?
- Ainda não achei a resposta. Eu... me sinto meio estúpida...
- O que você está fazendo aqui, Isabella?
- Eu não sei... acho... que tenho me sentido muito sozinha.
- Esse não parece o seu método preferido de conhecer novas pessoas...
- Eu... tenho um pouco de dificuldade em conhecer novas pessoas...
- Você é uma mulher linda. Não deve ser difícil encontrar em qualquer lugar algum homem disposto a sair com você. Porque não tentou lugares mais fáceis e ambientes mais tradicionais como bares, restaurantes, boates...?
- Porque... - Isabella pensou um pouco e respondeu, decidida - Porque não tem graça.

Edgar sorriu, parecendo satisfeito com o que tinha ouvido, e tomou mais um gole de vinho. Isabella dessa vez bebeu também e olhou em volta, imaginando que aquela piscina talvez fosse o lugar perfeito para fazer amor com aquele desconhecido.
Mas Edgar a pegou pela mão e a conduziu escada abaixo novamente.
Ela o seguiu em direção à varanda, pisando no tapete macio e felpudo a seus pés. Sob a luz das velas e os raios de lua que entravam pela varanda aberta, ele tomou a taça da mão dela e colocou sobre o parapeito. Então, com sua mão direita, tocou o rosto de Isabella. Acariciou por alguns instantes sua boca e enquanto a mão esquerda já soltava uma das alças do vestido branco. Sua mão direita desceu para o decote, soltando a outra alça e vestido deslizou suavemente pelo corpo de Isabella, caindo como uma folha de outono sobre o carpete. Isabella permaneceu parada, entregue às carícias daquele desconhecido. O constrangimento inicial havia desaparecido totalmente e agora dava lugar a uma excitação crescente, que ela jamais havia experimentado.
***

Algum ruído fez com que seus olhos se abrisse na manhã seguinte.
Ela não estava mais na varanda e havia uma pirâmide de vidro sobre sua cama, fazendo com que cores alegres dançassem pelas paredes do aposento com a entrada do sol . Ela ainda se sentia num conto de fadas. Por um momento teve vontade de recolher todas aquelas gotas de luz das paredes e levá-las na bolsa para sua casa.
Como exigiam as regras do Apartamento 7, não havia mais um braço à sua volta, porém ela estava coberta de pétalas de flores e um breve bilhete abaixo do travesseiro dizia: “Agora sou eu quem sei exatamente o vim fazer aqui.”

Ela se levantou, tomou um banho quente e, antes de sair, assinalou a opção “sim” num papel que estava sobre a mesa.

Edgar chegou em casa com a sensação de que havia vivido algo realmente especial e embora sempre conseguisse abstrair essa sensação para evitar um interesse maior pelas pessoas, dessa vez ele simplesmente não conseguia parar de pensar em Isabella. E o pior: estava decidido a encontrá-la de novo.
Ele tomou um banho e sentou-se no sofá. Não queria ficar relembrando a noite perfeita que tivera e também não queria ficar suspirando, fazendo planos futuros... queria apenas aguardar tranqüilamente o desenrolar dos acontecimentos.
Pegou o cd que havia escutado na noite passada e colocou pra tocar. Recostou a cabeça na poltrona e ficou ouvindo, de olhos fechados, até que de repente algumas notas diferentes invadiram seus ouvidos...
Ainda com os olhos fechados, ele sorriu e atendeu o telefone.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Confetti

Vesti a fantasia e pensei: "Porque não?"
Afinal, já tinha algum tempo que eu vinha me sentindo uma super-heroína. Desconfiava que tinha desenvolvido algum poder ou super-habilidade e aquela seria a ocasião perfeita para testar essa teoria.
Saí de casa e no meu caminho pela rua avistei pelo menos outras três mulheres com uma fantasia parecida. Mas a minha tinha aquele segredo. A delas era só uma fantasia mesmo.

Cheguei na praça. Estava calor.
No meio do céu azul claro o sol brilhava sem nenhuma reserva e eu fui pra baixo de uma árvore, não à procura de sombra, mas pra olhar pra cima. Eu sempre gostei da combinação do verde das folhas diretamente sob o azul puríssimo do céu. Fiquei com um sorriso meio idiota na cara, observando a dança preguiçosa das folhas na brisa quente. Sentia-me leve e feliz como um balão que acaba de ser solto no parque.

Aos poucos comecei a me dar conta dos sons ao meu redor. A praça estava tão cheia!
Música alta, pessoas conversando, sorrindo, cantando... todas muito coloridas, com chapelões absurdos, máscaras, espadas de plástico e tantas outros acessórios que de tão ridículos eram lindíssimos!
Uma explosão caótica de cores, sons, cheiros e sensações que elevavam o meu humor a um estado de quase transe eufórico.

Resolvi começar os testes: me aproximei de um carro azul turquesa que estava estacionado no meio da praça, e, sem nenhuma vergonha de parecer ridícula, tentei levantá-lo. Ele não se moveu, mas as pessoas em volta gostaram da minha tentativa e começaram a bater palmas, sorrindo e dando gritos de incentivo!
Senti uma leve decepção, porque super força era o poder que eu teria preferido, mas a simpatia das pessoas à minha volta redobrou o meu ânimo!

Me afastei para um novo ponto da praça e tentei o segundo teste, um pouco mais discretamente. Estendi uma mão e tentei fazer com que uma lata de cerveja saísse do isopor do camelô e viesse parar na minha mão. A telecinésia não funcionou, mas o camelô viu minha mão estendida e achou que eu estava interessada em comprar a bebida, por isso tirou uma lata de Antártica do fundo do gelo e botou na minha mão dizendo: "uma é três, duas são cinco".
Paguei os três reais e me afastei outra vez, sentindo o gole gelado refrescar cada órgão por onde passava dentro do meu corpo.

Mais ou menos duas horas se passaram enquanto eu realizava outras tentivas em volta da praça. Eu já havia riscado da minha lista de possibilidades: a imunidade à dor física, a visão de raio-x(outro grande desapontamento), a habilidade de controlar fogo e água, a auto-cura e a super velocidade, que me rendeu um fracasso um tanto quanto embaraçoso.

Já sentindo o bom humor inicial começar a ser subtituído por uma impaciência meio irritada, saí do meio da multidão e comecei a caminhar por uma das ruas paralelas, onde o esqueleto de um carro alegórico estava abandonado desde a noite anterior, após o desfile.
Caminhando no sentido oposto, ou seja, vindo em minha direção, estava um homem que parecia ter acabado de chegar ao local. Ele não vestia fantasia nenhuma, mas usava um "cap" de capitão. Lembrei de um outro superpoder que eu ainda não tinha tentado e olhei em seus olhos, na tentativa de ler seus pensamentos.

Por alguns instantes achei que havia funcionado porque quando nossos olhos se cruzaram eu senti algo se agitar dentro de mim causando um calafrio que percorreu todo o meu corpo. Mas não demorou pra que eu percebesse que não estava lendo os pensamentos dele. Seus olhos me encaravam, mas eu permanecia perdida naquele verde profundo e silencioso, como um barco à deriva em alto mar.

Ele se aproximou e abriu um sorriso discreto, como se já me conhecesse há muito tempo. Com uma piscadela de olho ele pegou minha mão e falou: "vem comigo."

Eu o segui e ele me ajudou a subir no carro alegórico abandonado. Chegamos ao topo do lugar resrvado para o destaque mais alto e e observamos juntos por alguns segundos a praça, que ao longe, parecia infestada de formigas coloridas.

Então ele tocou de leve meu rosto, me beijou e eu percebi com muita satisfação que estavamos voando.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Jornada ao Fim da Primavera

Tudo começou por culpa dele próprio. Quem mandou ficar me provocando daquela maneira? Ele achava mesmo que eu não teria coragem? Quis pagar pra ver e teve uma baita decepção.

Eu saí de casa deixando a porta aberta e corri pra não ver que ele vinha atrás, sem entender nada, disposto a me convencer a ficar.
Fugi. Fugi de dois anos de alegria, porque era desesperador ver no que tinham se tornado. Fugi do dinheiro que eu havia perseguido, fugi da esperança, fugi do sonho. E acordei num lugar totalmente novo, resolvida a nunca mais pensar no passado, nem para lembrar as coisas boas, nem para lamentar as coisas ruins.

Tudo o que eu tinha era o presente, iria pensar apenas em preocupações que fossem imediatas e naquele exato momento minha única nescessidade era... escovar os dentes!
Mas voltar para a minha casa estava fora de cogitação. Eu nunca mais pisaria naquele lugar de novo! Um chiclete de menta ia ter que resolver o meu problema por enquanto.

E foi exatamente ao comprar o chiclete que eu tive a certeza do que eu queria fazer em seguida: na padaria tinha um cartaz, um comercial de cigarro, que mostrava a foto de uma montanha cheia de neve. Eu sempre quis ver a neve e só há uma região aqui no Brasil que neva: O Sul.

Decidi que era para lá que eu iria. Ainda estávamos na primavera e eu tinha tempo suficiente para chegar e me estabelecer até o inverno. Seria perfeitamente possível. Eu podia pedir carona, roubar um carro, me esconder num caminhão, e por fim, se não quisesse fazer nada disso, ainda podia andar.
O importante era que, depois de muito tempo, eu finalmente tinha vontade de fazer alguma coisa fora da rotina na minha vida.

Comecei pedindo carona num ônibus que estava indo para a Avenida Brasil (esse era o meio mais prático de sair do estado, até onde eu sabia). Não foi muito difícil. Disse ao motorista que havia sido assaltada (minha bolsa tinha mesmo ficado em casa) e ele me deixou subir sem problemas. A viagem era um pouco longa e tive tempo de sobra a sós com meus pensamentos, apesar de que a última coisa que eu queria era pensar em nada que fosse relacionado ao meu cotidiano e à vida que eu estava deixando pra trás.

Enquanto estive sentada no ônibus, fiquei lembrando de um trecho de um livro do Érico Veríssimo: "Conhece a história do perú? A gente risca com giz um círculo em volta dele e o cretino acredita que está preso. Não seja como o perú. Atravesse o círculo."
No momento aquilo tudo fazia muito sentido para mim. Eu havia ficado quietinha dentro de meu próprio círculo por muito tempo, mas eu não estava presa. Podia ir embora a hora que quisesse, pra onde quisesse e era isso que eu estava fazendo agora.

Desci do ônibus no último ponto que ele faria na Avendia Brasil. Estava num lugar feio, estranho, não quis saber o nome...
Esperei um ônibus que me levasse ainda mais longe, o que não demorou muito.

Encontrar uma carona na Dutra já não foi tão fácil. Alguns carros paravam, mas eu não sentia confiaça para ir com eles e eu acabava dando uma desculpa qualquer e deixando eles irem embora, outros nem diminuíam a velocidade (esses eram a maioria).

Já estava no fim da tarde quando um rapaz parou um Uno azul no acostamento. Ele era magro, usava uma camisa de flanela e era tão pálido que parecia até um pouco doente, mas alguma coisa nos olhos dele me dizia que ele era confiável. Aceitei a carona.
Ele dirigia calado. Ouvia uma música bastante interessante e um pouco depressiva. Preferi não falar nada também.
Foi só no meio da noite que começamos a conversar. Ele perguntou se eu queria parar pra comer alguma coisa, eu disse que tudo bem. Nenhum dos dois tinha muito dinheiro (eu na verdade só tinha algumas moedas) então compramos umas frutas na beira da estrada e paramos no acostamento para comer.
Ele me agradeceu por não ter feito nenhuma pergunta no caminho (não estava muito disposto a coneversar naquele momento) e disse que me retribuiria fazendo o mesmo: sem perguntas! Queria apenas saber onde eu queria que ele me deixasse. Eu disse que o mais próximo possível da estrada que vai para o Paraná.
Depois disso voltamos pro carro e conversamos assuntos leves. Livros, música, estrelas e filmes...

Na manhã seguinte passamos por lugares belíssimos. Quilômetros de montes e planícies de grama verdíssima e cobertos pelas flores de primavera. Em uma certa altura havia um lago, um pouco afastado da estrada. Parecia um oásis no meio de um deserto de asfalto. Concordamos em parar o carro no acostamento e nos aproximar do lago.
A grama ainda estava úmida pelo orvalho da noite anterior e o sol já começava a esquentar. Ele sentou à beira do lago e começou a tocar seu violão. Eu não pensei duas vezes e mergulhei. De roupa e tudo!
Foi um dos momentos mais agradáveis que já vivi. Ficamos deitados na grama até o meio dia, desfrutando de uma paz profunda e totalmente desconhecida. Quando o sol já estava quente e minhas roupas já estavam secas voltamos ao carro.

Chegamos à São Paulo no final da tarde. Ele disse que ainda não estava pronto para voltar à realidade e se ofereceu para me levar até o Paraná. Eu aceitei, muito agradecida.
Entramos num shopping, ele sacou dinheiro e jantamos. O dia havia sido ótimo e nós estávamos realmente felizes. Meu novo amigo resolveu que preicisávamos de mais algumas coisas para uma viagem tão longa.
Comprou pra mim um vestido, um casaco e uma escova dentes (que foi o melhor presente que eu poderia ter recebido no momento!). Comprou algumas coisas para ele também.
Disse que não queria mais juntar dinheiro. Que odiava o dinheiro e queria trasformá-lo em alguma coisa útil. Compramos comida (muita!), cd's, alguns livros e depois fomos dormir num hotel bem legal.
No dia seguinte, quando acordei ele já estava pronto para partir. Havia acordado cedo e comprado um quantidade imensa de gasolina (os garrafões estavam enchendo o porta malas).

A carona até o Paraná se estendeu até o Rio Grande do Sul.
Ficamos uma semana na estrada e quando chegamos já nos considerávamos verdadeiros amigos. Ele me revelou que nunca mais iria voltar pra casa. Relsovera continuar viajando até acabar o dinheiro para gasolina e depois... quem sabe o que poderia acontecer?
Perguntou se eu queria ir com ele até a Argentina, mas eu respondi que não. Queria mesmo ficar no Rio Grande do Sul até o inverno.

Nos despedimos na estrada. Passávamos por um vinhedo e as árvores estavam lindas. Decidi que era ali onde eu tinha que ficar.
Ele parou o carro e ficamos nos olhando em silêncio por alguns instantes. Eu não sabia o que dizer! Tinha sido uma sorte muito grande tê-lo encontrado e eu não conseguiria colocar minha gratidão em palavras.
Permanecemos olhando um para o outro por mais algum tempo até que por fim pareceu que nossos olhos encontraram uma forma de se comunicar, pois eu pude ler nos dele o que ele nunca conseguiria dizer e sei que ele também compreendeu os meus. Finalmente eu saí do carro, sem dizer nenhuma palavra, mas com a impressão de que nunca tinha sido tão compreendida em toda a minha vida.
O Uno desapareceu pra sempre numa curva florida.

Eu estava mais longe do que jamais estivera em toda a minha vida. Parecia que ali, naquele lugar mágico onde o ar cheirava a uvas, nada do meu passado poderia me machucar. Todos aqueles sentimentos estavam para trás e eu podia pensar claramente, sem medo de que eles atrapalhassem o meu raciocínio.
Fui caminhando pelo vinhedo e decidi que era hora de lembrar. De repassar os fatos e minhas impressões pessoais sobre eles, pôr um ponto final onde havia ficado reticências.

Comecei analizando meu último dia no Rio e aquela briga fatídica que tinha acabado com tudo.
Eu sempre parti do princípio que tudo que uma pessoa de confiança me dissesse é verdade (é mais fácil do que viver desconfiando das pessoas que eu amo) então, sabendo disso, desde que ele havia conquistado a minha confiança (especialmente depois que passamos a morar juntos) ele já sabia que devia pensar bem antes de qualquer coisa que me dissesse, porque eu acreditaria!

Pois bem. O motivo da briga nem era tão forte assim (já haviam tido piores): um simples telefonema! Custava ele ter me esperado terminar? Mas não! As coisas tinham que ser feitas sempre na hora que ele queria!
Desde que ele tinha conseguido aquela maldita promoção, sentia-se o chefe do mundo! Nem de longe lembrava o romântico professor de literatura de cinco anos atrás.
A briga (praticamente um monólogo) começou com os resmungos dele e várias coisas bastante injustas começaram a ser jogadas na minha cara:
"Eu sempre me esforço para fazer tudo o que você quer" (mentira),
"sou sempre eu que peço desculpas" (mentira),
"você nunca reconhece que está errada" (mentira).
Menira, mentira, mentira!!!

A discussão já estava ficando irracional. Eu peguei a chave para sair e dar uma volta e nessa hora ouvi as palavras que tornariam aquele o momento mais dramático do nosso relacionamento:
"Vai, foge da briga outra vez! Você sempre volta mesmo!" Isso foi dito de uma forma bem pouco romântica. A intenção era me atingir e conseguiu. Respondi sem conter a raiva em minha voz:
"Olha que um dia eu posso não voltar... "
"Só se eu tivesse muita sorte!"

Um misto de choque e decepção me atingiram como um golpe no estomago. Dei a ele cinco segundos para pensar no que havia dito e se retratar (o raciocínio dele consegue ser bem rápido para ofender, então podia usar a mesma agilidade para se desculpar), mas ao invés de aproveitar a oportunidade, ele tratou de se jogar na própria cova:
"O que foi? Tá aí parada por quê? Desistiu?"

Bati a porta na cara do cretino e saí, com um sentimento de liberdade que há muito tempo eu não experimentava.

O som da porta batendo ecoou novamente na minha memória: um ruído surdo e precipitado ocupando o espaço de um diálogo sério que nunca havia existido:
Lembrei do silêncio magoado que sempre se colocava entre nós dois quando ele me peguntava o que estava errado. Das palavras que eu nunca disse, mas que me consumiram furiosamente quando ele me perguntou porque estávamos brigando tanto ultimamente. E de todas as vezes que respondi com ironia quando o ouvia dizer que queria me fazer feliz.

Percebi que nunca havia realmente tentado fazê-lo enxergar o quanto havia mudado. Eu o culpava em silêncio, tentando não me envolver em discussões. Esperava que ele percebesse por si mesmo que eu estava infeliz... e a porta se fechou.

De repente, no meio de todas aquelas árvores eu descobri estava sozinha de novo. Que quando as flores da primavera morressem e não pudessem mais colorir o meu caminho o verão seria vazio e o inverno seria frio demais.
As palavras que ouvi durante a minha jornada voltavam em minha lembraça, mas faziam um sentido totalmente diferente desta vez: "Vou viajar até acabar o dinheiro da gasolina". "Não seja como o perú".

Talvez o perú não fosse mesmo tão cretino. Talvez ele fosse apenas sábio o suficiente para compreender que tudo o que ele precisa está realmente ali, dentro do círculo de giz. E talvez... durante a noite, quando ninguém está vendo, ele saia tranquilamente para dar o seu passeio.
Sim, esse mundo imenso e infinito é interessante apenas para um passeio descompromissado, mas quando o verão acabar eu posso querer estar dentro do meu círculo e voltar para quem é realmente importante pra mim.

Caminhei o resto do dia pelos vinhedos. O cheiro doce do ar perfumava as lembranças da viagem, que me acompanhavam com uma sensação de sonho acordado, de fim de primavera.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Fim de Verão

Eu já estava a pelo menos uns dois meses andando sem rumo. Nem sei quantos bairros do Rio de Janeiro eu havia percorrido àquela altura. Dormindo na rua, debaixo de marquises, comendo salgados e refrescos que algumas pessoas me pagavam e com a ligeira sensação de que alguma coisa estava muito errada naquilo tudo.
Essa impressão começou no terceiro dia daquela loucura. Tudo o que eu conseguia lembrar era que eu acordara dois dias atrás, com o sol queimando meu rosto e a areia da praia de Copacabana provocando coceiras por todo o meu corpo.
Mais nada!

O que eu estava fazendo ali? De onde viera? Qual era o meu nome? Vazio... minha memória estava totalmente em branco. Levantei, e comecei a andar lentamente pelas ruas, sem conseguir formar nenhum raciocínio completo.

Dois dias depois eu já começava a pensar melhor. Os questionamentos começavam a surgir. E foi então que, passando pela frente de uma porta espelhada eu me vi pela primeira vez. Aquilo era impossível! Como eu poderia ser um mendigo, se estava vestido com aquelas roupas? Aquele sapato era muito confortável e parecia caro!
Coloquei a mão no bolso e senti meus dedos tocarem um maço de notas de papel. Definitivamente, eu não era um mendigo! Mas então, como? Como eu perdera a memória? Como aquele dinheiro todo fora parar no bolso da minha calça? Como eu havia dormido na areia da praia, como um vagabundo qualquer?
Como, e por quê?

Sentei atônito, num banco de uma praça qualquer. Eu tentava pensar, mas cada vez que eu fazia um pouco mais de esforço nesse sentido minha cabeça começava a doer insuportavelmente.

Fiquei olhando o movimento dos automóveis na via. Era meio dia e o calor estava escaldante, o que fazia minha dor de cabeça aumentar ainda mais. E então um ônibus parou no ponto à minha frente. Estava pintado de uma cor azul tão refrescante, tão relaxante que minha dor de cabeça passou completamente enquanto eu o observava.
Ele começou a se mover e eu resolvi seguí-lo. É claro que ele corria bem mais rápido do que eu, mas acompanhava o seu percurso até perdê-lo de vista (normalmente em uma esquina) e quando chegava até o ponto em que o tinha visto pela última vez, ficava parado até passar outro ônibus da mesma linha, para eu continuar seguindo.

Demorei um dia inteiro para chegar ao ponto final dele.
O momento mais perigoso dessa caminhada foi quando tive passar por dentro de um túnel que não tinha acesso para pedestres, mas eu não estava disposto a desistir. Naquele momento, seguir aquele ônibus era meu único objetivo e naquele momento me parecia a única causa de eu estar vivo.
Fiquei sentado perto do ponto final, esperando algum dos ônibus seguir para a garageme quando vi que um deles estava saindo, implorei ao motorista que me desse uma carona.

Acho que a minha aparência (eu já estava sem fazer a barba a uns três dias, e sem tomar banho, idem) comoveu o condutor, que me deixou subir com a condição de que eu saltasse um ponto antes de ele chegar, pra que os fiscais não vissem. Saltei no ponto combinado e fui seguindo o ônibus a pé.

Chegar na frente daquela garagem de ônibus foi uma das sensações mais maravilhosas que eu me lembrava de ter experimentado nessa vida! O muro estava todo pintado com as cores refrescantes do ônibus e eu senti uma paz tão consistente, um alívio tão profundo que meus olhos se encheram de lágrimas.
Encostei na marquise de uma casa abandonada que ficava do outro lado da rua e fiquei contemplando aquele muro até cair no sono. Permaneci naquele mesmo lugar por quinze dias.

Durante esse tempo alguns funcionários da garagem já me conheciam. Eu contei que não sabia nada sobre o meu passado e que gostava de ficar ali, olhando para o muro. Um deles caiu na gargalhada quando eu contei como havia ido parar ali, mas logo os outros o repreenderam, dizendo que aquilo não tinha graça nenhuma.
Eles estavam morrendo de pena de mim, mas eu não conseguia entender o motivo disso, já que me sentia totalmente feliz, olhando para aquelas cores celestiais. O meu mundo estava completo e quando eu dizia isso para eles, eles pareciam sentir ainda mais pena!
Traziam pão e café de manhã e à noite. Na hora do almoço, traziam uma quentinha e um copo de refresco pra mim. Conseguiram até um lugar para eu tomar banho, todos os dias.

Infelizmente, depois dos quinze dias as minhas dores de cabeça voltaram. O verão tinha terminado e os dias estavam úmidos e chuvosos. O azul daquele muro agora me dava uma sensação de afogamento e de perdição.
Levantei e fui embora, sem me despedir dos meus amigos (eles com certeza estariam usando a camisa azul e seria insuportável chegar perto deles). Pensei em deixar meu nome escrito na parede onde eu estivera hospedado, para eles lembrarem de mim, mas como eu não tinha nome, fiz apenas um buraco no gesso do muro e fui embora.

Não demorou muito para que eu encontrasse outro motivo para viver. Eu estava caminhando a duas horas quando começou um temporal. Corri para baixo de uma árvore para tentar me abrigar. Alguma coisa me fez olhar para cima e eu vi que o galho mais forte apontava para uma rua estreita.
Resolvi seguir nessa direção e lá estava outra árvore, seu galho principal apontando para outra direção.

A essa altura eu já estava ensopado, mas nada mais me importava, a não ser seguir os galhos das árvores. Eles pareciam tão seguros e fortes em suas resoluções que me transmitiam uma confiança irresistível! Fui seguindo alegremente, dançando debaixo dos pingos que caíam sobre mim.

Depois de três dias chegei ao Horto e entrei praticamente num estado de êxtase! Todas aquelas árvores firmes e seguras me indicando um caminho! Eu queria estar no meio delas, cercado por toda aquela sabedoria e estabilidade que me encantavam! Entrei na mata e fiquei andando em círculos por quarto dias.

As árvores me aconselhavam enquanto eu dormia! Cada uma era especialista em uma área e por isso me encaminhavam de umas para as outras, para que meu tratamento fosse completo.
Eu comi algumas frutas e insetos e bebi água da chuva e de pequenos riachos que cortavam as trilhas. Até que fui encaminhado para a mais sábia das árvores. Todos os seus galhos apontavam para a mesma direção e eu senti que havia alcançando o auge de todos os meus anseios e necessidades. Me aproximei o máximo que pude do tronco e finquei meus pés na lama, como se fossem raízes.
Mas a comunhão com essa árvore majestosa durou apenas uma noite. As primeiras horas do dia seguinte foram chuvosas e o vento acabou derrubando o galho mais alto e mais forte desta grande árvore e por pouco não me acertou!

Senti que meu mundo vinha abaixo junto com aquele galho. O barulho da queda despertou alguma coisa dentro de mim. Um sentimento de tristeza e de solidão que vem me acompanhando até hoje.

Pela primeira vez eu senti que faltava alguma coisa. Alguma coisa que não estava naquela floresta, nem nos desenhos dos ônibus e nem em nada do que eu tinha visto durante aquela minha jornada. Alguma coisa que era o real motivo da minha existência, e que eu precisava desesperadamente encontrar!

Pela primeira vez tive consciência de que eu estava sujo - e aquilo me incomodou. Havia uma cachoeira no meio da mata. Tomei um banho, lavei minhas roupas.
O dinheiro ainda estava lá, embrulhadinho num saco plástico. Olhar para ele me dava um mau pressentimento. Parecia que ele despertava uma memória emocional do estado em que eu me encontrava quando o adquiri.
Tive vontade de jogá-lo no riacho que corria até sumir de vista. Tive vontade de rasgá-lo e, não sei porquê, tive vontade de xingá-lo. Mas algum instinto desconhecido me fez guardá-lo.

O sol do inverno estava fraco. Eu fiquei algumas horas nú, esperando que minha roupa secasse. Pendurei-as em um galho de árvore e também tive vontade de abandoná-las. Por alguns momentos cheguei mesmo a odiar aqueles pedaços de roupa bem cortada, que pareciam uma cela móvel. Naqueles momentos em que fiquei nu, no meio da floresta, experimentei uma sensação de liberdade tão sublime, que não pude deixar de sentir um certo pânico ao pensar em me vestir outra vez.
Meu corpo parecia reconhecer nessa sensação de nudez um prazer impagável, mas o vento frio de inverno me fez querer voltar àquela "prisão de fibras".

De repente me vi pensando em como a vida era esquisita: nos impelia a todo momento a abrir mão do prazer e da liberdade em troca de um conforto e de uma segurança discutíveis. Não que, na verdade, eu me lembrasse de nenhuma outra situação que me tivesse feito sentir assim, mas de alguma forma eu sabia que já havia passado por muitas.

A roupa secou, eu me vesti, e, dentro daquela armadura, senti que estava preparado para voltar ao mundo. Na verdade, percebi que estava realmente ansioso por isso. Saí correndo da floresta e continuei correndo pelas ruas até perder o fôlego.

Eu tinha pressa de encontrar! Havia uma agonia dolorida no meu peito, me lembrando a cada segundo que eu estava vivendo à toa, uma sensação de afogamento, de vazio, de solidão... aquilo era urgente!
Mas oquê eu estava procurando? Aonde??

Os dias seguintes foram de uma tristeza sombria e de um desespero inacabável. Havia uma interrogação, um absurdo, um revolta em tudo o que e eu tentava fazer. Por quê? Pra quê? Eram as perguntas que não queriam calar. "Pra quê estou andando assim? Pra quê estou respirando? Por quê? Deve existir algum motivo."
Mas quando eu procurava uma distração, uma resposta, um alívio só encontrava a certeza interna de que não era nada daquilo o que eu queria.

As árvores agora pareciam debochar das minhas dúvidas, das minhas necessidades, da minha dor. Elas não podiam me compreender. Eram auto-suficientes, com suas raízes profundas, seus galhos altos, sua força e estabilidade. Não sentiam fome, frio, e não sentiam o vazio que estava me devorando por dentro.

Foi quando percebi que não poderia mais viver assim. A liberdade que eu julgava ter havia acabado. A alegria que eu sentia em encontrar prazer nas coisas simples havia sumido. Estava faltando alguma coisa!

Resolvi então voltar ao lugar onde tudo aquilo havia começado: a praia. Se ela não me desse a solução, as profundezas do mar poderiam ao menos calar a minha dor, para sempre!
Eu agora tinha pressa em chegar. O caminho parecia muito mais longo do que da primeira vez que o percorri.

Demoraram alguns dias para que eu encontrasse as areias de Copacabana novamente. Estava de noite. O brilho pálido da lua parecia intensificar o frio que cortava os meus ossos, a minha carne, o meu coração.
Sentei na areia e me entreguei aos pensamentos, como um mártir que se entrega a dolorosos sacrifícios, sabendo que essa é a última saída, a única solução.

Algumas coisas foram ficando claras e eu tive a certeza de que eu já havia conhecido anteriormente aquilo estava procurando. Eu só precisava lembrar...
Eu também sabia, de alguma forma, que lembrar do meu passado não seria agradável, muitas coisas ruins haviam acontecido (sensação de afogamento, abandono, prisão).

Se eu escolhesse esquecer tudo pra sempre poderia tentar me acostumar àquela agonia (que certamente não acabaria) e continuar a viver livre e despreocupado (talvez voltar para a floresta).
Considerei por um tempo essa opção: Se lembrar de tudo parecia tão insuportável, talvez fosse mesmo melhor continuar esquecendo, continuar esquecido. Peguei o embrulho de dinheiro e observei. Fui invadido pela mesma sensação de pânico, de estar encurralado, de estar preso a um ciclo infinito: Medo. Confusão. Dor...

Era melhor não lembrar! Guardei o dinheiro novamente. Deitei na areia e fiquei olhando para o céu estrelado, iluminado, infinito. Quis sentir novamente aquela liberdade. Quis sair seguindo todas as estrelas do céu, mas não podia. A agonia não deixava. Era grande demais!

Eu não poderia viver dessa forma!
Levantei e comecei a caminhar pela areia. Eu tinha que lembrar! De qualquer jeito!

Caminhei por alguns metros e então, de repente, senti meu coração disparar! Estava ali, na minha frente, e no momento que encontrei tive a certeza de que era exatamente o que eu vinha procurando todo esse tempo. A única coisa que me faltava - e me bastava - para ser feliz.

Ela estava parada. Nos seus olhos uma expressão de imensa surpresa e alívio! Olhava pra mim com desconfiança, como se não pudesse acreditar em seus prórpios olhos.

Nos aproximamos lentamente um do outro. Ela estava chorando e, para grande surpresa minha, percebi que eu estava chorando também.