domingo, 26 de junho de 2011

Senhor de Si.

Retirou a mordaça com cuidado e arriscou abrir os lábios por alguns poucos centímetros. Até ali tudo bem. Com as mãos ainda trêmulas de cansaço, fome e medo, levou à boca uma colher cheia com a deliciosa sopa e seu estômago se contorceu de dor e prazer.

As primeiras colheradas foram tímidas e cautelosas, mas então a fome que já sentia a três dias tomou o cotrole de suas mãos e ele começou a atacar o prato com ferocidade. Ele mal podia controlar o impulso de simplesmente desistir do talher e tomar todo aquele caldo com um gole só, e passaram-se alguns minutos antes que ele pudesse perceber a gravidade daquele descuido: tarde demais.


Engolira muito ar junto com a refeição e não conseguiu conter um arroto involuntário após a última colherada. Ficou apenas observando, impotente e aterrorizado, enquanto outro pedaço seu lhe escapava pela boca.

****

Tudo havia começado um ano atrás. Ele estava na mesa do seu bar preferido, com um grupo de amigos, assistindo ao jogo de seu time de futebol. Num certo momento, o time maracara um gol e ele soltou um palavrão. Porém no momento que abriu a boca, tomou um susto: dois olhos iguais aos seus haviam saído voando de seus lábios e simplesmente desaparecido no ar. Ninguém à sua volta parecia ter percebido.

Após um breve instante de imobilidade aterrorizada, ele resolveu que era hora de parar de beber e decidiu pedir uma água. Quase engasgou de susto quando fez o pedido ao garçom, porque nesse momento um par de orelhas também escapava por entre seus dentes.

Atordoado e começando a temer por sua saúde mental, ele levantou correndo e foi até o banheiro, jogar uma água no rosto.
Enquanto sentia o frescor da água gelada sobre sua pele começar a acalmá-lo seu olhar foi atraído para o espelho à sua frente e foi então que ele percebeu: seus olhos não eram mais os mesmos! Tinham mudado de cor, de formato e até mesmo de expressão! Ele, que havia se acostumado a ter olhos simples e de uma inexpressividade quase ingenua, mal podia se reconhecer através daquele par de íris azuis que o encaravam de volta e pareciam insinuar um perigo constante.

Subtamente uma ideia lhe passou pela cabeça e ele afastou os cabelos para ver suas orelhas: também estavam diferentes: além de ligeiramente menores, uma delas exibia um piercing prateado no lóbulo superior. Seria possível que...?

Ele resoveu fazer uma experiência: após verificar que não tinha mais ninguém no banheiro, voltou para a frente do espelho e pronunciou a palavra “teste”. No instate em que seus lábios se abriram para soltar o som, outra parte de seu corpo saiu flutuando com a palavra.
Imediatamente ele olhou para suas mãos: estavam maiores, um pouco mais peludas e calejadas. Os dedos grossos de aparência um tanto brutal não lembravam nem de longe os anteriores, delicados e bem cuidados, que tanta vezes haviam sido alvo de zombaria por parte de seus amigos. Aqueles, definitivamente, não eram “dedos de moça”.

Sentiu que seu assombro cedia lugar para um estranho tipo de euforia com aquela descoberta: cada vez que abria a boca, uma parte de si era modificada, ou melhor, aperfeiçoada. Era como se suas palavras, aos poucos, começassem a aproximá-lo da pessoa que sempre quis ser.

Permaneceu no banheiro por mais alguns minutos testando sua nova descoberta e quando voltou para sua mesa seus cabelos estavam mais longos e espessos, sua pele ligeiramente bronzeada e seus dentes brancos como porcelana. Nenhum de seus amigos pareceu se surpreender ou notar qualquer diferença.

No dia seguinte ele já tinha dois encontros, com mulheres que haviam praticamente se jogado nos braços dele ao final da noite anterior. Antes de sair para o cinema com a segunda e mais bonita das moças, ele tentou mais alguns “ajustes” em sua pessoa. Apesar de não poder controlar qual parte de si era modificada, ele ficou satisfeito ao perceber que conseguira tornar seu timbre de voz mais potente e “profundo”.

Foi apenas no segundo dia que ele começou a perceber que algo estava errado com aquela nova situação. Em primeiro lugar, assim que soltou um bocejo de manhã, percebeu que outra coisa saía voando de sua boca, mas dessa vez não era uma parte do seu corpo. Parecia... uma memória! Ele procurou em sua mente onde havia visto aquele jardim e aquele sorriso feminino que flutuaram na sua frente antes de se dissolver na luz do dia, mas não conseguiu se lembrar.

Ligeiramente perturbado por aquela visão, ele se revirou na cama e então percebeu que não estava sozinho: a loira da noite anterior estava a seu lado, ainda adormecida. Ele então lembrou que na verdade estava na casa dela e soltou um sorriso de satisfação.

Essa era a primeira vez que dormia com uma mulher desde seu ultimo namoro, há dois anos atrás. Seu novo “eu” havia levado apenas dois dias para fazer o que seu antigo passara um ano e meio tentando. E daí que ele perdesse algumas memórias pouco importantes no processo? Para se transformar nessa nova identidade confiante e bem sucedida, ele estava disposto a fazer qualquer sacrificio.

Ficou olhando para a moça por alguns minutos, enquanto se lembrava da noite agradável que tiveram. Ela era bonita, simpática, inteligente e tinha senso de humor. Exatamente o tipo de garota que ele vinha procurando há muito tempo.

Sentiu vontade de surpreendê-la com um café da manhã, mas quando se levantou da cama percebeu que seu corpo resitia com todas as forças à essa intenção. Ao inves de preparar o café e acordar a moça como havia planejado, ele simplesmente se vestiu e foi embora, antes que ela acordasse.

Chegou em casa sentindo-se frustrado e envergonhado por seu próprio comportamento. Precisava aprender a controlar esses impulsos que seu novo corpo queria impor. Irritado, bateu a porta soltando um palavrão e observou com um ligeiro estremecimento que outra memória escapava de sua boca.


***

Isso tudo parecia ter acontecido há milênios atrás! Um ano depois ele já havia cedido a essa nova personalidade quase que por completo. Era bem verdade que continuava se transformando cada vez que abria a boca e que nem todas as mudanças eram exatamente positivas. Mas em compensação sua vida estava muito mais animada , cheia de emoções e experiências que ele jamais teria experimentado se não tivesse abandonado sua antiga personalidade.

Decidira que algumas atitudes politicamente incorretas em troca de uma vida excitante e bem sucedida era um preço que valia a pena ser pago.

Até que, três dias atrás, ele percebera todo o peso daquela decisão.

Após uma discussão com seu melhor amigo, ele simplesmente perdera o controle sobre seus implusos! A discussão rapidamente evoluiu para uma briga e ele quebrou o nariz do amigo de infância com um soco. Quando sua namorada tentou interferir ele jogou a moça pra longe e disse algumas palavras bastante ofensivas.

Quanto mais ele cedia àquele impulso de violência, mais sentia a fúria crescendo dentro de si e resolveu que era melhor ir pra casa, antes que as coisas ficasses piores.

Caminhou em círculos por alguns segundos em sua sala, até perceber que mal reconhecia o ambiente em que estava. Nenhum daqueles móveis lhe parecia familiar, não fazia a menor ideia de quem eram algumas pessoas em seus porta-retratos, e, pra ser franco, estava bastante aborrecido com o mal gosto da decoração daquele apartamento. Não estava nem um pouco à vontade naquele lugar, que por tantos anos havia sido seu refúgio, seu lar.

Pela primeira vez ele não reconheceu o reflexo que viu em seu espelho. Havia se transformado numa pessoa completamente diferente!

Atordoado pelo choque e pelo arrependimento, ele decidiu interromper aquela transformação da única maneira que sabia: recusando-se a abrir a boca. Estava decidido a encontrar os pedaços que havia perdido de si mesmo enquanto ainda havia tempo, antes que não restasse nem a consciencia de que ele realmente perdera alguma coisa.

Sabia que a cada nova perda o caminho de volta tornava-se cada vez mais difícil e por isso ele havia optado pelo uso da mordaça. Não podia arriscar reações involuntárias. Cada pedaço que havia sobrado de si mesmo era valioso demais.

Ele agora estava exausto e perdido, mal sabia por onde recomeçar. E enquanto observava outro pedaço de si mesmo escapar daquele corpo que não era seu, percebeu que tinha muito pouco tempo.

Recolou a mordaça e, com um longo suspiro, obrigou suas mãos a pararem de tremer. Ele ainda tinha sua vontade.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Fragmento n° 2

Acordo quando os primeiros raios de sol entram pelas frestas de madeira. Meu corpo está tão dolorido que mal consigo me mover, mas então percebo que não poderia mesmo: estou encolhida dentro de uma caixa de madeira.

Não acredito que aconteceu de novo!

Começo a bater com os pés e as mãos, fazendo o máximo de barulho possível possível. Não demora muito pra que eu ouça passos se aproximando. Não preciso nem ouvir a voz de quem está do outro lado, pois reconheço seu perfume imediatamente:

- Me tira daqui seu idiota!
- Você não está presa. Sabe muito bem disso.
- Mas eu não consigo me mover direito pra sair. Meu músculos estão totalmente doloridos, por causa dessa posição estúpida que eu dormi.

Ouço um suspiro impaciente e então o lençol que tampava a caixa onde estou é removido. A claridade intensa fere meus olhos e eu os fecho, enquanto sinto dois braços fortes me levantando cuidadosamente e me ajudando a colocar o pés no chão. Sinto fisgadas por todos os músculos do meu corpo enquanto tento endireitar minha postura.
Ele me segura pelos ombros e tenta fazer uma massagem, mas suas mão pesadas só fazem com que eu sinta mais dor.

- Por que você não me deixa em paz? - Reclamo, enquanto o empurro pra longe de mim.
- Tudo bem. - Ele dá de ombros e sai do quarto.

Observo o quarto à minha volta, enquanto continuo tentando alongar meu corpo: a caixa de madeira onde dormi é o único "móvel". O lençol que a cobria está agora caído no chão cinzento e gelado ao lado dela e eu percebo que é a primeira vez que o vejo. Fora isso o quarto está totalmente, absurdamente vazio.

Abro a porta e sigo pelo corredor estreito até uma pequena sala. Ele está parado perto da janela, e eu observo seus olhos muito negros perdidos no balanço das copas das árvores do lado de fora. Ele sabe que estou ali, mas não se vira pra falar comigo, o que me deixa ainda mais irritada:

- Eu odeio aquela porcaria de caixa!
- Você veio por que quis. Outra vez.
- Não sei como eu achei o caminho pra essa espelunca!
- Você sempre acha, não importa quantas vezes eu continue me mudando.
- Como se você se mudasse pra muito longe!
- Mas eu nunca te convido pra me visitar. - Ele responde, virando-se pra me encarar.

Cada centímetro da minha pele parece esquentar à medida que seus olhos percorrem meu rosto.
Eu me aproximo alguns passos, quase sem perceber que estou andando, e fico a apenas uns poucos centímetros de distância dele. Seu corpo emana um calor agradável naquela sala gelada e vazia.

- Você comprou um lençol. - Digo, olhando em seus olhos.
Ele percebe o tom de acusação em minha voz e vira de costas, mas não se afasta.
- E daí?
- Nada. Só estou dizendo que você comprou um lençol. E você nunca compra nada.
- Não preciso de nada.
- Nem do lençol.
- Mas você precisa.

Percebo pelo tom de sua voz e por um leve estremecimento em seu corpo que ele se arrependeu dessa ultima frase. Isso me faz sentir um pouco melhor.

- Vou embora então.- Digo, virando de costas e me afastando em direção à porta.
- Não volte. Eu não estarei mais aqui.
- Vai se mudar de novo?
- Vou.
- Ta bom, não vou voltar.
- Mas vai me procurar de novo. - Percebo que ele está caminhando em minha direção.
- Não vou.

Começo a abrir a porta mas ele a fecha de novo, com um movimento brusco.
Fico imprensada entre ele e a porta. Sua respiração tão próxima de minha pele que eu não consigo evitar um arrepio.

- Você precisa parar de me procurar, está entendendo?
- Acha que eu não sei disso? Acha que eu gosto de acordar naquela caixa idiota?
- Então por que você simplesmente não pára de vir atrás de mim?
- Eu não consigo! Não sei o que acontece! Por que você não pára de abrir a porta pra eu entrar?
- Não posso!
- Não pode me deixar do lado de fora por uma noite?
- Não.
- Não pode porque tem medo que me aconteça alguma coisa, ou não pode porque não consegue me recusar? - Pergunto com um sorriso malicioso.
- Pára com essas perguntas idiotas!
- Eu acho que é um pouco das duas coisas.

Passo um de meus braços em volta de seu pescoço e acaricio de leve sua boca com a outra mão. Sinto que ele estremece, mas não se afasta.
- Você não estava indo embora?
- Foi você que fechou a porta.

Me aproximo mais e encosto meus lábios nos dele. Ele responde imediatamente, com um beijo quase desesperado.
Seus braços envolvem o meu corpo com uma mistura de avidez, desejo e carinho, e eu sei que ele deve ter se controlado a manhã inteira - e a noite passada - para não me tomar nos braços antes.

O beijo vai ficando cada vez mais suave, até que nossas respirações parecem estar sincronizadas. É simplesmente a sensação mais maravilhosa do mundo eu eu começo a me perguntar porque não fazemos isso com mais frequência!

Então, exatamente enquanto estamos mergulhados nesse momento de perfeita harmonia e prazer, ouço o leve ruído do ponteiro no relógio de pulso dele. Um calafrio gelado e dolorido percorre meu corpo com a velocidade de um relâmpago e eu instintivamente o empurro pra longe.

- Eu não posso. Sinto muito.
- Eu sei.

Ele tenta não passar nenhuma emoção em sua voz, mas seus olhos parecem experimentar uma dor mil vezes maior do que a do calafrio que acabei de sofrer.

Abro a porta e saio correndo, mesmo sabendo que ele não virá atrás pra tentar me impedir.