terça-feira, 1 de novembro de 2011

Vários tons de vermelho

Logo no primeiro gole da taça de vinho que ele me ofereceu eu percebi que tinha alguma coisa errada. Aliás, ele havia escolhido a bebida errada pra tentar me enganar, pois conheço praticamente todos os tipos de vinhos, desde as piores sangrias às mais sofisticadas safras européias.
Por isso mesmo não levei mais de dois segundos para perceber que aquilo não se tratava de uma garrafa mais cara ou mais ordinária: tratava-se de uma taça envenenada.
Guardei a informação pra mim mesma, e, com uma satisfação redobrada, continuei bebendo. Eu havia esperado tempo demais por aquele momento e não iria dar a ele o prazer de me ver recuar ou protestar.
Aquela noite era a única coisa que me restava, a última coisa com o que eu me importava e se era assim que ele queria conduzí-la, que fosse! Eu não tinha mesmo mais nada a perder.
Saboreei cada gole daquela bebida fatal, enquanto olhava profundamente em seus olhos: pude perceber o prazer com que ele me via beber a própria morte e tive que segurar uma risada ao imaginar que ele deveria estar se sentindo a pessoa mais esperta do mundo naquele momento.
Ele me observava com o prazer de um caçador que assiste a presa caminhando para sua emboscada, eu bebia com a alegria de ter plena certeza de onde meus passos estavam me levando.
Alguns instantes depois senti que a sala onde estávamos começava a rodar. Estava finalmente acontecendo!

Tive apenas tempo suficiente para olhar no relógio da parede o minuto exato em que meu corpo caía no chão soltando seu último suspiro: onze e cinquenta e sete da noite.

****

Finalmente está tudo acabado! O corpo dela está caído a meus pés, inerte e estranhamente menos assustador.
Eu percebo que um dos cacos de cristal de sua taça perfurou seu olho esquerdo durante a queda e um arrepio atordoante percorre meu corpo.
Ainda tentando controlar minha própria respiração com a intensidade do momento, eu forço minhas mãos ainda trêmulas a afastar seus longos cabeiros loiros e observar por alguns instantes aquele rosto sem vida. O batom tem o mesmo tom de vermelho de seu vestido e o contraste com a bancura de sua pele é tão vibrante que é difícil acreditar que ela não esteja mais viva!
Suavemente e sem saber muito bem o que estou fazendo, percorro meus dedos por seu pescoço e percebo que a pele macia ainda está quente, porém sem nenhuma pulsação.
Ela já deveria saber que nunca iria conseguir de mim o que veio buscar nessa noite. Nunca deveria ter me procurado! Toda essa situação poderia ter sido facilmente evitada se ela ao menos tivesse escolhido outra pessoa pra conversar naquela festa!

Uma lágrima de alívio e desespero me escapa aos olhos e eu levo a mão à cicatriz em minhas costas para retomar a coragem que começa a me escapar.
Preciso, mais uma vez, repetir pra mim mesmo que não sou eu o monstro nessa história. Que nada disso é culpa minha. Que eu fui forçado a chegar nessa situação extrema.
Mas meus argumentos são inúteis e sinto que meus nervos começam a me vencer. Minhas pernas agora tremem tanto que eu preciso me apoiar na parede, enquanto corro até o banheiro para vomitar. Abro a torneira e deixo que a água gelada anestesie a pele de minhas mãos e rosto, me sinto tão exausto que mal posso acreditar!

Caminho até o quarto e sento na cama, tentando colocar os pensamentos em ordem. A foto de minha noiva ainda está na cabeceira e aquele sorriso confiante e alegre me provoca uma dor insuportável!
De repente tudo volta à tona em minha memória: a festa de noivado, a estranha e sensual convidada que ninguém parecia conhecer, os dois meses de perseguição, a queimadura em minhas costas, o assassinato de Daniela!
Apesar de eu saber que não provoquei nenhum desses acontecimentos, não consigo evitar a sensação de culpa. Eu não sei o que fiz para atrair sua atenção, mas deveria ter evitado tudo isso de alguma forma!
O cansaço emocional começa a me vencer e sinto meus olhos se fechando contra a minha vontade. Meu corpo se estende sobre a cama e eu cochilo por apenas alguns segundos, mas acordo com um peso sobre meu peito.

Seu olho ainda está perfurado pelo pelo cristal, mas ela não parece se incomodar com isso. Seus joelhos estão muito proximos ao meu pescoço e apesar de ela não ter nenhuma arma em sua mão eu tenho a certeza de que dessa vez ela deixará muito mais do que uma cicatriz...

***

Enquanto saio do apartamento, não posso deixar de lamentar a perda dessa oportunidade. Eu dei a ele mais chances do que a qualquer outro, porque percebi nele um potencial que há muito tempo acreditava ter deixado de existir.
Penso até em comprar um vestido preto e ficar de luto por alguns anos em sua homenagem...

Mas justamente quando estou dobrando a esquina sinto aquele aroma maravilhoso outra vez: o cheiro do amor verdadeiro. Justamente na noite em que acabo de perder um noivo!
Dessa vez não deve ser coincidencia!