sábado, 2 de março de 2013

Cortina de Fumaça



No momento que vejo aquele jovem rapaz, pouco mais que um adolescente espinhento, com sua camiseta de banda de rock, cabelos compridos e mal penteados, atravessar a porta do bar arrastando num passo lento seu insignificante corpo de menos de 70 quilos, não posso conter um sorriso exasperado. Assim como eu previa, esta noite será um desperdício total.
Tento esconder-me atrás da nuvem de fumaça de meu charuto, enquanto seus olhos ainda vermelhos de alguma ressaca percorrem idiotamente o bar procurando por mim. Talvez ele vá embora e me deixe terminar meu vermouth em paz.
O garoto coça a rala barbicha, confuso. Claramente não reconheceu ninguém neste bar como a pessoa que sua imaginação o fazia procurar, mas ao invés de desistir e ir embora, ele aproxima-se do balcão e pede uma dose de uísque barato.
Neste momento simpatizo com ele pela primeira vez: é preciso ter pelo menos um pouco de personalidade para se entrar num local como este, com a intenção de me encontrar, e pedir o uísque mais barato da casa. Também noto que ele está tentando parar de fumar, pois no momento que seu copo de bebida é entregue, seus dedos fazem um movimento involuntário de acomodar na mesma mão do copo um cigarro que não está ali.
Aquele simples movimento leva minha mente a uma longa viagem no tempo e ali, em meio a toda aquela fumaça e calor eu posso vê-lo por um momento: meu primeiro “Acerto”.
Aquele havia sido sem duvida o homem mais tranquilamente perturbado que eu conheci na vida e ele fez exatamente o mesmo gesto no dia em que lhe paguei um drinque com o restante de seu pagamento. Velho, com uma pele salpicada de manchas causadas por anos de exposição ao sol e os olhos inquietos e distantes que eu com o tempo iria reconhecer no rosto de tantos outros seres humanos viciados em algum tipo de substancia ou atividade, ele havia vendido sua língua, e com isso, perdera o gosto em fumar. Beber, no entanto foi um hábito que ele conservou.
- Não é pelo sabor, como eram meus charutos, mas pela sensação do álcool em minhas veias – ele explicou naquela letra miúda em seu novo bloco de comunicação.
                Com aquele Acerto eu ganhei meu primeiro e mais frequente cliente: um milionário hipocondríaco e solitário, que era capaz de tagarelar por horas e horas nas raras ocasiões em que recebia uma visita. Ele acreditava que, quando uma parte de seu corpo estava doente, era preciso comer aquela mesma parte de um ser humano saudável e desta forma ficaria curado.
                Eu não o questionava e nem me importava, assim como os Acertos também não pareciam se importar com o fim que levariam as suas partes do corpo vendidas. Todo mundo sempre tem seus próprios motivos pra cometer loucuras ou crimes. Sejam esses motivos verdadeiros e legítimos, ou apenas desculpas para acalmar a consciência, eles nunca importam de verdade, a não ser para a pessoa que os criou e utiliza.
                Conquistei muitos clientes e nunca me choquei particularmente com a excentricidade de seus pedidos. Gosto de me considerar uma pessoa difícil de impressionar. Ainda assim, alguns Acertos conseguem ser perturbadores.
Desde que entrei para o negócio, sempre considerei apenas coerente com nosso tipo de sociedade que um homem tenha o direito de comer aquilo que seu dinheiro puder lhe pagar, desde que encontre alguém disposto a vender, principalmente aqui em Los Angeles.  Esses sempre foram nossos termos: comprar apenas de uma fonte primária e voluntária.
Também nunca me surpreendeu o fato de terem pessoas dispostas a vender partes de seu próprio corpo. Afinal de contas, a quantia certa de dinheiro pode representar muito mais mobilidade do que uma perna pra alguém que mal tem recursos pra ir ao cinema, por exemplo.
Mas os Acertos não são sempre tão coerentes. Já tive Acertos tão milionários quanto meus clientes, que queriam se livrar de partes de seu corpo que lhes causavam culpa, ou que recusavam o pagamento em dinheiro e queriam apenas presenciar o preparo e consumo de suas partes vendidas.
 Há também os Acertos viciados, e esses são os piores: perdem todo o dinheiro que recebem em seu vício e depois voltam a me procurar tentando vender mais partes de si mesmos. Por ética própria, eu recuso os recuso depois da terceira venda, mas sei que existem muitos outros no mercado que os aceitam, pagando bem menos e vendendo-os mais barato, até que não sobre nada, nem mesmo seu cadáver.
Estes são os atravessadores do negócio marginal. Nunca terão clientes frequentes e nem o estilo de vida que profissionais como eu alcançam. São perigosos e traiçoeiros. Muitos deles começaram como clientes e se viciaram tanto na carne humana que foram levados à falência. Alguns poucos também já foram Acertos e resolveram tentar a própria sorte de maneira amadora, cheios de rancor.
Eu nunca me preocupo muito com eles. Já estou no negócio a tempo suficiente para ter amigos nos lugares certos e segurança além da que o dinheiro pode comprar. Mas garotos como aquele moleque ali no bar deveriam se preocupar.
Ele termina sua dose de uísque. Percebo que meu charuto também já se apagou e estou desprovido de minha cobertura de fumaça. Nossos olhares se cruzam no segundo em que eu alcanço meu isqueiro mais já é tarde: as chamas em sua camiseta de rock metal já se aproximam de minha mesa.
Seus olhos vermelhos me encaram sem dúvida nem medo. Talvez um pouco de ódio, mas ainda é cedo pra dizer:
- Já é uma boa temporada para negócios? – Ele pergunta, demonstrando que aprendeu corretamente a frase código de cumprimento.
- Isso depende. Oferta ou investimento? – Respondo minha parte, mesmo já imaginando a resposta.
- Investimento.
- Você... tem certeza? – Retruco, incrédulo. Na certa esse cabeça de vento entendeu o código errado. Afinal de contas, de onde um pirralho como esse tiraria os recursos e contatos necessários para se tornar meu cliente?
- Tenho absoluta certeza. - Responde ele sentando na cadeira em frente a minha. -  Estou à procura de novos investimentos em gastronomia.
E então eu o encaro mais atentamente. O cabelo preto é na verdade uma peruca e algumas das espinhas falsas já começam a soltar de seu rosto devido ao suor. Suas feiçõs parecem ainda mais jovens e simétricas por baixo da falsa barbicha e seus olhos azuis me parecem estranhamente familiares, até que eu percebo...
Eu gosto de me considerar uma pessoa muito difícil de impressionar, mas esse cliente está definitivamente usando a camiseta errada. 

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